sábado, 19 de fevereiro de 2011

A CARTA


O ventilador gira levando  ar para todos os cantos, olho para as paredes, elas não olham para mim, o dia parece ter sido em vão, não tive muita fome hoje, a água bebi por precisão, fotografias no computador, imagens de pessoas a muito tempo esquecidas, elas ressuscitam em minha memória, criam vida, andam em minha imaginação, beijos, risadas, tristezas, brigas, tudo volta com intensidade, a música penetra em meus ouvidos como se estivesse me masturbando, ouço com atenção, a música é alegre, não combina com o momento, perco tempo pensando em soluções para minha vida, volto a escrever, o que me instiga a escrever é toda essa falta de alguma coisa, sempre percebo que me falta algo, procuro sem saber ao certo o que é, isso me leva a escrever, rabisco palavras soltas, frases sem sentido, parágrafos indecisos, textos cheios de dúvidas, pinto com violência o meu cotidiano, descrevo com preguiça o meu dia, reflito com angustia sobre a minha vida, ela não é um mar de rosas, não é um inferno, não sei bem o que ela é, somente posso afirmar o que não é, a certeza não caminha ao meu lado, ando sempre duvidando, escrevo mais um parágrafo.

Percorro a noite vendo acontecimentos, amores, aborrecimentos, bares, ruas iluminadas, praças com namorados, marginais, drogados, a noite é um aquário com os mais variados peixes, saio pela escuridão nadando em pensamentos loucos, a insanidade percorre meus neurônios, paro em um bar, bebo uma cerveja, volto para casa. Há uma praça perto de minha casa, passo por ela, aquele homem está lá, ele não fala com ninguém, já é tarde, o que será que ele está fazendo ali? Não sei, ele apenas está sentado olhando para o nada, sua barba, seu cabelo despenteado, sua roupa amarrotada, tudo contribui para que sua imagem fique desagradável, ele parece não se importar, volto de uma noite estranha, normal já que todas são estranhas para mim, ver esse homem sentado na praça também é normal, ele está ai todas as noites, ele é uma figura misteriosa, ainda não sei seu nome, ele mora aqui perto, fim da noite, dormir parece necessário.

Descubro o nome do homem, Caio, ele apareceu no jornal nesse dia, uma corda no pescoço e uma carta na mão, ele pulou da mesa da cozinha e ficou flutuando no ar, o que me chamou a atenção é que a carta não foi escrita por ele, mas por uma mulher a mais de vinte anos, eu gostaria de saber o conteúdo da tal carta, o que está escrito ali deve ter alguma coisa com o suicídio de Caio.

Beatriz caminha com o seu vestido azul, ela vai se encontrar com seu namorado Fernando, os dois vão a um restaurante, comem, bebem vinho e depois vão até a casa de um colega de Fernando, chegando na casa do colega de seu namorado Beatriz é apresentada a ele, "prazer, Beatriz", "oi, meu nome é Caio", assim se conheceram a mais de vinte anos, assim começa a história que iria me levar até aquele homem triste que ficava todas as noites sentado na praça.

Sento no banco onde ele estava semana passada, olho com melancolia para as estrelas, eu também não tenho muitos motivos para me alegrar, a noite continua esdrúxula, me pergunto qual a finalidade de um ser como eu continuar aqui, meu futuro parece ser tão vago, sem finalidade, continuo sentado no banco olhando as estrelas, o espaço seria uma ótima válvula de escape, eu poderia ficar na lua observando de longe a vida dessas pessoas, a carta me vem a mente, quero ler, quero mergulhar na vida daquele sujeito, a noite está fria, ela não é sentimental como eu.

Beatriz gosta da conversa com Caio, Fernando diz que são poucas as pessoas que conseguem fazê-la sorrir, Caio fica sem graça, ele é um bom comediante, deveria trabalhar com teatro, mas ele resolveu ser professor, Beatriz pergunta se Caio tem namorada, ele responde que não, ele é solitário, não tem facilidade em relacionamentos, mas não diz isso, apenas diz que está solteiro, já é o bastante, a noite parece ser pequena para tanto assunto, eles conversa por horas, Caio sente uma certa atração por Beatriz, ele sabe muito bem esconder seus sentimentos, ela apenas fica encantda com sua simpatia, seria um ótimo amigo para ela, aquele homem alegre e falante seria o mesmo triste sentando em um banco de praça, seria o mesmo suicida com uma carta na mão, ainda quero ler aquela carta.

Amanhece, a luz entra devagar em meu quarto, a luminosidade causa um efeito de alegria, ainda estou vivo, a porta aberta me deixa ver o corredor, penso como será meu dia, vou até o banheiro, escovo os dentes, enquanto me fito no espelho lembro de que esse rosto é o meu, essa face sem expressão me pertence, tenho que ir trabalhar, na rua o sol cai em corpos prontos para mais um dia nesse mundo, passo pela praça, ela está cheia de grama e saudade, ele nunca mais irá sentar-se naquele banco, tenho que ir trabalhar.

Ele olha no espelho, se masturbando e pensando em Beatriz, ele imagina o corpo que estava em baixo daquele vestido azul, como aquela boca gemeria de prazer, com movimentos frenético ele pega em seu pênis com firmeza, seu sonho, seu louco tesão solitário, ele suspira e pensa em Beatriz, goza, agora ele está mais tranquilo, olha para o lado e não vê nenhuma boca, nenhum carinho, ele chora, a solidão é um inferno, ele quer Beatriz, a paixão não tem limites, Caio irá descer até as chamas.

Vejo um artigo na internet, é sobre história, no texto está uma visão sobre a marcha para o oeste, o movimento bandeirante e a formação do povo e da cultura brasileira, o autor é Caio Silva, um historiador e professor que há cerca de uma semana se suicidou, ele era um fanático pelo movimento bandeirante, queria comopreender a formação da cultura brasileira a partir de uma perspectiva Weberiana e culturalista, ele queria muita coisa, eu queria ler a carta, ainda vou conseguir.

Pelo correio chega uma carta, Caio a lê com interesse, nela está escrito algo sobre Beatriz, ela morreu a mais de cinco anos, mas só agora ele recebe a carta escrita por ela e quardada por sua irmã, ele lê com lágrimas nos olhos, tem algo nela que o faz emocionar, ele tem um rancor e um ódio quardado no coração, tudo isso dá lugar ao conteúdo da carta, o perdão e a saudade batem forte em seu ser, ele sobe em uma cadeira, amarra uma corda em uma vigota, em seu pescoço um laço feito com a corda prende com força, ele pula, a morte o espera com ansiedade, a carta em sua mão.

Beatriz briga com Fernando, é o fim do relacionamento, depois de um ano de espera finalmente Caio terá a chance de ficar com ela, ele se aproxima, fica ao seu lado nos momentos de tristeza, não demora até que ele lhe dá um beijo, ela carente aceita, retribui, é o começo de um romance, é o fim da inocência, eles ficam juntos, Caio está apaixonado, Bearriz ainda gosta de Fernando, tudo caminha bem até que Fernando resolve voltar com Beatriz, como deixar um homem tão legal e reatar um relacionamento com um cara que só a traia? No coração ninguém manda, ela sente por Caio, mas volta com Fernando, Caio sofre calado, é mais uma vez um solitário, agora ainda tem um agravante, a saudade de Beatriz.

Vejo pela janela uma linda garota sentado no banco da praça, corro para lá, é Viviane, cabelos loiros, pele branca como leite, com apenas dezesseis anos já é pura beleza, eu com meus vinte anos tenho receio, ela é muito nova, mas quem consegue mandar no coração? Eu sento ao seu lado, contemplando a paisagem e sua lindas pernas, ela tem olhos castanhos que brilham mais que as estrelas, seus lábio parecem pedir para serem beijados, não conversamos, sou tímido demais, ela percebe que eu a olho, eu a desejo, ela vai embora, perco a aportunidade, sonho com ela durante a noite, no outro dia o sol invade novamente meu quarto, mais um dia de vida, isso já está ficando chato.

Um copo de vinho, um cigarro, ela bebe e pensa em Caio, enquanto isso ele está em um quarto de motel com uma prostituta, não sabe seu nome, não importa, falam sobre coisas fúteis, ela sabe sobre o mundo, ele sabe sobre história, ela já sofreu po amor, ele está a beira da loucura pelo mesmo motivo, dois perdidos no mundo, duas existências solitárias, ela faz sexo como ninguém, ele tem orgasmos, Beatriz em sua casa pensa em Caio, como ele era bacana e carinhoso, ela ama Fernando, mas sente um carinho especial pelo colega de trabalho do namorado, olha a fumaça, ela sobe, sonhos vão na mesma altura, ela seria feliz ao lado de Caio, Caio goza mais uma vez, a prostituta geme falsamente, ela tem que ganhar dinheiro.

Ao invés do mundo deveria existir apenas o nada, essa é a lógica, como surgiram as coisas? Do nada? De Deus? Mas ele também veio do nada, ou sempre existiu, o que é um grande absurdo, a vida é um absurdo, existir é algo inesplicável, vou vivendo e pensando o que será de mim, o futuro é nebuloso, ele ainda não existe, o passado deixa suas marcas, contribui pouco com minha angustia, sou livre para refletir sobre isso, Beatriz era livre para escolher, isso a angustiava, ela escolheu o que queria escolher, ficar com Fernando, se arrependeu por deixar Caio tão triste, a vida é assim, temos que optar, eu escolhi viver mais um dia, vou arriscar para ver o que irá acontecer, estou sentado no banco da praça, aquele homem de barba e cabelos despentados vivia aqui, ele pensava o que tinha feito de sua vida, ele não era um otimista, se parecia comigo, eu não fumo, ele também não fumava, Beatriz acende mais um cigarro, isso iria matá-la, o câncer iria corroer seu corpo, antes ela iria escrever uma carta para Caio, a morte é uma situação constrangedora.

Ela iria abandonar Fernando e se casaria com Caio, esse com rancor não a aceitou, ainda por cima estava grávida, ele não iria criar o filho do outro, ele nunca perdoou Beatriz, depois de vinte anos ele lê uma carta escrita por ela, na carta ela diz que o filho era dele, ela o queria, sentia sua falta e queria casar-se com ele, ele não aquentando a dor em seu peito pula com uma corda em seu pescoço, é o fim para ele. Beatriz nunca contou para Fernando que Paulo não era seu filho, ela não o largou, casaram e criaram o filho, ela morreria de câncer, mas antes escreveu a carta e entregou a irmã, essa a quardou, depois que Beatriz morreu a carta ainda ficou com a irmã por mais cinco anos.

Eu consegui ler a tal da carta, depois de lê-la fui até a praça, sentado naquele lugar comecei a pensar em Caio, ele era solitário como eu, enquanto me lembrava do rosto daquele homem o sol ia se escondendo atrás dos prédios, um tom laranjado tomava conta do horizonte, é o fim do dia, amanhã começa tudo outra vez, não sei se tenho ânimo e disposição para viver mais vinte quatro horas, no outro dia o sol entra novamente em meu quarto, as paredes iluminadas refletem o branco, levanto, escovo os dentes, lá fora há tanta alegria, passo pela praça, o banco está vazio, mais tarde estarei sentado lá a espera de algo, ainda não sei o que é, falta algo em minha vida, o sol brilha, o dia promete ser mais um, como os outros, ainda vivo, caminhando penso em Caio, ele não foi corajoso, não aquentou ver outro amanhecer.















Um comentário:

  1. Ótimo texto, uma verdadeira mistura de personagens e tempos diferentes, parece o roteiro de um filme pós-moderno.

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