terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

CARNAVAL, FOLIA COMERCIAL E INSEGURANÇA SOCIAL.



O carnaval chegou, a folia é quebrada pela chuva fria, pelo tom cinza do feriado que cai liquefeito sobre nossas almas, corpos suados, ou olhos cheios de luz, cores e pensamentos libidinosos sobre o presente. Os sons da bateria das escolas de samba não me atraem, nada contra, apenas não faço parte dos admiradores da folia. Minha preguiça, meu gosto estético, todo meu ser me leva para outra forma de arte e diversão, menos enérgica, mais contemplativa. Linhas soltas, palavras impregnando o escopo do olhar, textos literários, políticos, o que vem à mente em imagens em movimento toma protagonismo, o cinema.

Filmes irônicos, secos, românticos, deslumbrantemente quietos, barulhentamente melancólicos, a maioria dos que foram deleitados por esses olhos tinham um ar incomodo, uma seriedade contemplativa, mas um ganha destaque pela poesia violenta enredado em filosofia, nas falas, e em imagens quase congeladas da câmera, é o filme NORTE, O FIM DA HISTÓRIA.

A ideia de fim, de morte, de não andar pela seca, quente e devastada terra incomoda, tira o sono da dormente carne humana, o medo do inevitável se instala, o medo da morte, é de morte que se nutriu o carnaval sem samba desse que aqui escreve como quem vê “o moinho da vida triturar os sonhos tão mesquinhos” do sambista Cartola. Duas mortes foram sentidas e foram simbólicas nesse feriado que é um intervalo entre o nada e coisa alguma.

A primeira morte é literalmente física, nesse final de semana morreu mais um colega da polícia civil, o agente Oscar Shariff, vítima de bandidos que assaltavam um pit dog no setor Oeste, na cidade de Goiânia. A crítica poderia vir contundente: é mais um, tantos morrem e ninguém fala nada, só por que é policial se faz tanto barulho, e por ai vai, mas, vou apenas colocar que, primeiro, por questão pessoal pesa sobre mim a responsabilidade de falar dessa morte em específico, em segundo, há um caráter simbólico por trás disso, pois, é um membro da segurança pública que tem sua vida ceifada, isso mostra como a violência toma conta da sociedade de forma alarmante e inexorável.

É público, notório e ululante a banalização da violência em nosso país, governantes não investem em educação, em saúde, em transporte de qualidade, em meios de distribuição de renda, sem contar a falta gritante de investimento direto em segurança pública, polícias sem estrutura, sem efetivo, presídios sem qualidade, sem condições humanas e sem vagas! Tudo isso contribui para o aumento de assaltos, furtos, tráfico de drogas e latrocínios como esse que retirou a vida de Oscar. Por coincidência o aumento da violência se deu com os mandados eternos do grupo político de Marconi Perillo no poder em Goiás.

A outra morte foi a de uma instituição, de uma locadora de filmes. Perdemos a Cara Filmes, perdemos a melhor, mais robusta, cult e diversificada locadora de vídeos de Goiânia, a morte dessa locadora se deve não a violência marginal, mas sim pela violência da TV a cabo, internet, downloads, serviços de Streaming como a Netflix. A concorrência desleal desses serviços ligado a crise econômica levaram muitas locadoras a fecharem as portas, porém, com o fechamento da Cara Filmes fechamos também um espaço cultural diferenciado em Goiânia, assim como aconteceu com o fechamento recente da 2001 em São Paulo.

Qual outro lugar, além da Cara Filmes, podemos encontrar acervo tão rico de filmes noir, Neo Realismo italiano, Nouvelle Vague francesa, cinema iraniano, obras primas do cinema mudo, Cinema Novo, diretores como Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Kurosawa, Godard e etc.?

Quem quer viver para sempre? A eternidade é tediosa, os vampiros são melancólicos por que são eternos, o “para sempre” é um endeusamento e um inferno, mas isso não quer dizer que as coisas devem morrer de forma estúpida, violenta e sem ternura. A morte de Oscar Shariff mostra a estupidez de uma sociedade sem educação, sem o mínimo de dignidade humana, o animalesco toma conta dessa selvageria que se tornou o mundo. O fechamento da Cara Filmes é apenas mais uma porta que se fecha para a educação cinematográfica, porém entristece também e deixa o carnaval com um samba cinza, um moinho triturou os sonhos tão simples de ver bons filmes, de uma vida seguir em frente, como a do Oscar, esse jovem que teve seus sonhos, potência de agir, amizades interrompidas. Hoje menos arte, menos um ser humano e mais violência reina onde não tem espaço para a humanidade, civilidade, apenas a barbárie e filmes comerciais para alegrarem dias sem entusiasmo, segurança e esperança.  

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Crônica barata sobre o preço caro da passagem de ônibus.



A chuva teimava em continuar, o ar gélido e indecente penetrava pelos vãos das postas e das janelas, a refrigeração era colossal, glacial. A madruga fria, o sono pesado, a barrigada vazia, eis o som estridente do despertador, a dor do despertar, a falta do que sonhar. Acordou. Pedro acordou, mais um ser, mais um número da estatística do mundo administrado com olhos abertos.

Café, metade de um pão já endurecido e muito frio, abre a porte, abre o coração e a mente para a vida lá fora, sai rumo a jornada de trabalho proletária. O escuro, a chuva, o corpo ainda cansado da labuta do dia anterior, Pedro não pode reclamar ou descrever psicanaliticamente sua vida, tem apenas que, mecanicamente, caminhar até o ponto de ônibus, tem que trabalhar, o sistema não pode parar, a roda deve girar, ele tem que girar o mundo ou será engolido por ele. Foi engolido pela serpente metálica cheia de vermes humanos, nas entranhas do animal vai mais um...

A lotação é mais do que máxima, ultrapassa incomensuravelmente o limite tolerado, como sardinha Pedro vai imprensado com outros giradores de rodas dentro da lata alimentícia móvel. Em todas as paradas chegam mais pessoas para apodrecerem dentro do intestino da besta.

Chegando no terminal de ônibus Pedro vai pagar “a passagem’ e passar pela catraca, surpresa, o valor da passagem aumentou, da noite para o dia, uma revolução aconteceu, um golpe que não é de estado, mas está tirando a governabilidade de Pedro. Como um vampiro desalmado o cobrador suga o sangue monetário do pedreiro, melhor, do servente de pedreiro, subcategoria do subemprego no submundo do ser humano, subitamente somos tragados para a “subdignidade” subindo em um ônibus sem humanidade, mas com valor de super-humanidade.

Jornal, notícias, mais do mesmo, espere.... Algo novo, quebradeira, baderna, vandalismo, criminosos quebram ônibus, incendeiam, mascaras, pedras, polícia, inferno nas ruas, tudo por conta do aumento da passagem, isso é coerente, podem fazer isso por conta de um reajuste? Mas não seria também um crime cobrar mais caro por um transporte ruim enquanto pessoas passam fome, moram em periferias sem asfalta, sem posto de saúde, sem ao menos dinheiro para o básico?

Quanta dúvida bombardeia esse Vietnã que é a cabeça de Pedro, mas ele não pode refletir sobre isso, tem que deitar e dormir, a chuva não para, a vida também não, tem que acordar as cinco da manhã para pegar o ônibus e ir trabalhar, quem sabe ele sonhe com um mundo melhor nesse intervalo, quem sabe o mundo acabe e todos morram nessa noite, quem sabe todos os ônibus foram incendiados, quem sabe, mas Pedro sabe que que tem que ir embora, o tempo não para, consome a alma e leva a noite embora e traz a labuta de volta, rodando, girando, circulando como as rodas do ônibus, com o preço absurdo como a passagem do coletivo urbano sem urbanidade, para carregar seres sem vida, quem sabe Pedro não sabe disso.