segunda-feira, 22 de outubro de 2012

INDIFERENÇA



Seus olhos secos denunciavam sua falta de emoção naquele momento, Flávio olhava para o caixão sem se emocionar, ele não ligava para a morte, as flores tinham a beleza da vida e não o tom fúnebre que ali desempenhavam, Flávio sentia prazer em ver as mulheres fofocando, comendo pão de queijo, crianças andando pela casa, o morto ali enfeitando a sala era apenas uma desculpa para uma reunião social. O morto que ilustrava esse velório monótono era um tio de Flávio, um tio querido, mas que não contava mais piadas, falava palavrão ou beijava as empregadas, nem tio era mais, não era mais um ser, era apenas uma lembrança materializada naquele corpo sem vida.
Em sua casa o cachorro o espera, um gole de wisk para animar a tarde, uma música mais vibrante para esquecer o tom negro do enterro, o cachorro deitado no tapete o olha como se contemplasse um extraterrestre, Flávio bebe vagarosamente aquele líquido alcoólico sem pestanejar, ao fim de mais um pensamento vem a lembrança da terra caindo sobre o caixão, uma nota de roda pé, um texto do Kafka, lembranças do esperma viscoso descendo em suas mãos, uma bomba atômica, o caos de luzes de 2001, a terra caindo, o mundo vibrando, pessoas tristes, pessoas chorando, ele bebia e se lembrava com alegria do fim daquele dia.
A noite chega com sua manta fria, ele visita sua esposa, assim como o filósofo de o ser e o nada ele se casou, mas mora separado, um beijo de boa noite, nessa noite ela mantém aquele distanciamento, reclama de seu serviço, uma certa indiferença seguida de alguma brincadeira onde ela o coloca como um ser amoroso e ela como uma pedra de gelo cobiçada. A indiferença lançada em seu discurso não é mais profunda que a de Flávio com a morte, essa coisa que dá brilho a  vida, que dá um nó na garganta. Eles não transam naquela noite, apenas conversam e se despedem com um beijo mais profundo, em sua casa o cachorro o espera.
A música é uma velha conhecida, century foi uma banda de sua infância, brega como cartas de amor, a morena com corpo escultural sobe ao palco, ele a olha com seu olhar  guloso, devora até a alma da moça, a coca-cola gelada desliza pela sua garganta dançando o tango caliente, esfriando a paixão efervescente, enquanto a morena tira a roupa ele pensa naquela mulher em sua cama, no fim ele se levanta e vai embora sem devorar o fruto proibido.
Enquanto caminha pela noite seu cérebro mistura aqueles seios fartos com a fartura de lágrimas do velório de seu tio, aquelas pessoas tristes o constrangia, ele se excitava com as lembranças da dançarina, ele a imaginava chupando seu pênis, de repente um barulho, a terra caindo no caixão, uma batida, sangue pelo chão, ele olha, em sua frente um acidente, uma mulher  e um bebê, os dois mortos dentro do veículo, ele olha com indiferença, mas algo o perturba, aquele bebê morto, tão jovem, não pode mais respirar a fumaça de poluição e nem beber coca-cola gelada.
Mais uma noite de visita a sua esposa, hoje ela o recebe com um jeito mais provocante, chega a demonstrar um certo carinho, eles discutem sobre socialismo, liberdade e novela das oito, no fim se deitam, seus corpo flamejantes de desejo esquentam suas mais maliciosas fantasias. O dia chega, o sol penetra na residência de Verônica.Flávio se despede de sua esposa, ela está novamente com seu ar de arrogância e sua fala fingindo desinteresse, mais um beijo e ele se vai.
A terra cobria o caixão, por fim Flávio deixa o cemitério, seu tio agora é apenas um dado na memória, antes de sair ele fita os jazigos, ele pensa que um dia irá morar ali, mas ele não existirá, ele morrerá, apenas seus restos orgânicos estarão ali, ele, assim como uma barata, uma baleia ou formiga deixará de existir, lembra que sua esposa se emociona em velórios  e que ela acredita em outras vidas. Enquanto saia do cemitério pensava na vida, no fato de não ter filhos, na existência finita de seu corpo, nas ideias políticas sociais democratas, sua boca seca já pensava na bebida que o esperava, já podia ver seu cachorro pulando de alegria. O bebê morto, a mulher sangrando, o esperma escorrendo, a terra sobre o caixão, sua esposa, o gélido olhar, o másculo sentir, a bomba atômica do explorar, o capitalismo a ruir, tudo misturado com wisk e sendo admirado pelo seu cachorro, mais um gole ele iria dormir sentindo a vida em seu corpo, uma lágrima rola pelo seu rosto, é fruto da música tema do filme.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O CACHORRO BRANCO



Olhando aquele cachorro fico pensando como seria bom não ter consciência do mundo, saber que existe algo fora de mim, com vida própria, com movimentos contrários a minha vontade, como é bom não ter consciência da dor, do amor, da ressaca e da alvorada, como seria bom não caminhar melancólico, ter alegrias ilusórias, ou êxtases momentâneos. O cachorro branco e com a língua para fora apenas vive sem refletir sobre isso, o que ele sente não o faz diferente, não o aflige ou angustia, ele apenas está ali, abanando o rabo, comendo ração e esperando o sono dominar seu ser.
Em frente a televisão fico pensando em mulheres nuas, na tela uma reportagem sobre culinária, um programa matutino sobre futilidades, não me prende atenção, ao meu lado um colega falando ao celular, imagens do filme Dança com Lobos povoam minha mente indecente, o colega fala com sua amada, minha amada vontade de ir embora correr nos campos como um lobo, uivar  em campos abertos onde índios caçam búfalos, sou aquele homem branco de bigodes grandes encantado com a selvageria, com a civilização indígena do filme, sou na verdade uma angustia latente que inveja a vida canina por não ter que existir plenamente.
No espaço a solidão é tão normal, de lá vejo um azul longínquo, sinto a presença do divino, lá a incógnita do universo se transforma em uma contemplação do  infinito, além do que vejo existe tudo que não sinto, no espaço deve ser assim, me sinto assim pensando como um astronauta de mármore, quebrando o gelo com meu machado imaginário, com minha raiva presa na garganta , com meu libido sufocando minhas entranhas, entranhado nas vísceras de meus pensamentos está essa vontade de me isolar do planeta, aquele cachorro com a língua de fora não pensa nisso.
Uma proposta indecente, uma vírgula que separa o sujeito e seu predicado, uma coisa anormal que normaliza toda a caótica e desenfreada ação de respirar, sonhar, comer a maçã do pecado, poetizo sobre a noite e o luar, disserto sobre a política e o olhar, jogo toda a minha erudição fora como pérolas aos porcos quando falo as paredes, assisto filmes para poder passar o tempo, o tempo passa rapidamente, parece uma contagem regressiva para a morte, morrer não tem data marcada, se eu fosse o cachorro branco não me preocuparia com isso, isso é apenas algo a não se preocupar, a falta de preocupação é preocupante, eu reconheço.
A música de Bach toca no fundo da sala, no fundo da alma toca o sino de atormentar, corre um rio calmo, a árvore da vida repousa no meio do jardim do Éden, o paraíso fica dentro de alguma semente que floresce sempre que gozamos a vida e desaparece ao lado do inferno que queima nosso corpo.
Na tv o programa continua a falar de futilidades, ao meu lado o colega ainda fala de amor, como é engraçado, no chão do lado esquerdo da cadeira adormecido está o cachorro branco, continua minhas percepções sem razão, minha existência sem sentido, meu olhar ao infinito, meu mundo sempre caindo e se reconstruindo com o pensar, o cachorro está tão bonito, adormecido, eu estou escolhendo, liberdade é uma angustia sem lamento, na tv tudo igual, na vida a repetição beija o inédito, a morte nos espera na esquina, se eu fosse o cachorro nem estaria escrevendo isso.

domingo, 7 de outubro de 2012

O SACRO SACRIFÍCIO DE AMAR.



Enquanto caminhava pela sala ela olhava para o quadro, a imagem sacra a fazia pensar na origem da vida, no sentido da mesma, ela olhava atentamente para a santidade plasmada em tinta, o cristianismo tinha uma mitologia tão forte, uma ideia tão bela e aquela imagem de cristo pendurada na parede era uma razão mais que significativa para encher os olhos de lágrimas quentes e grávidas de algo sublime. A música tocava no fundo de sua alma, ela continua caminhando pela sala ao som de Bach, como é gostosos ouvir o erudito som do músico enquanto admirava a bela imagem do menino calendário pendurado em uma cruz, o sangue a descer, o vivo corpo a apodrecer, o espírito santo a erguer a fé diante daquela estética sacra, mas como num passe de mágica ela se lembra de algo carnal, de algo profundamente apaixonante, ela se lembra de Wagner, não o da ópera, mas aquele que a fazia suspirar de amor, tesão e calor. A imagem sacra pendurada na parede dá lugar a imagem do corpo nu de Wagner, ela se lembra de seus abraços fortes, de sua boca deslizando sobre seu corpo, de sua língua quente penetrando em seus ouvidos, passando sobre seus seios, os gemidos, os tapas, os puxões de cabelo, a forma como ele a penetrava por trás, o jeito como ela cavalgava em seu membro, suas genitálias ligadas em um êxtase sem fim, o orgasmos líquido dele pingando de sua boca. A música de Bach não combinava com sua nostalgia erótica e nem o quadro, mas ela não resistiu e pensou em Wagner, ela continua a andar pela sala...
Como pode uma pessoa se apaixonar por outra sem conhecê-la, sem ao menos saber de onde veio, assim pensava Mônica quando refletia sobre sua paixão avassaladora por Wagner, um homem que veio não se sabe de onde, não se sabe fazer o que e nem para onde vai, um homem que faz trocadilho com o mistério, que rima com a incógnita, que esbanja charme e faz o coração desenfreado de Mônica virar um carro de fórmula 1! O amor contagia seu corpo, ela se importa com alguém que ela nem sabe ao certo quem é, seus olhos verdes, sua barba, seu jeito fleumático de falar, seu olhar solto no ar, as angustias de uma vida se transforma em anseios de um sentir, ela o deseja, ele sabe o ponto fraco de sua libido, de seu jeito de gozar a vida e sentir o orgasmo sem sentido, ele a faz mulher na cama, a santifica em seu carinho quase romântico, mas ele não lhe entrega tudo, não se abre por inteiro, ele esconde sua verdade, seu lado camuflado de existir.
A chuva caia fina, Wagner com seu rosto sem expressão caminhava com a pistola na mão, a sua frente aquele senhor de cabelos já grisalhos dava passos tímidos, passos fúnebres, pisando na grama molhada os dois marchavam para dentro da mata, aquele final de tarde seria o final de muita coisa e o início de outras. Parados, o homem já sentia o frio daquele momento, Wagner friamente conversava com o ser a sua frente, os dois tinha intimidade, se conheciam de algum lugar, estranho que a lágrima que saia dos olhos do homem não eram de medo ou emoção, eram de  orgulho misturado com decepção, difícil misturar água e óleo, sua mente fazia isso com perfeição, agora de joelhos e sem lágrimas no rosto ele falava com Wagner com uma voz profética, dizia que a vida era um moinho e poderia triturar os sonhos infantis dele, mas sabia que não podia julgá-lo, que não poderia culpá-lo, Wagner com um pingo de humanidade que resistia em seu espírito se despede de seu pai e atira na cabeça do velho sem piedade. O velho que agora deita na grama molhada de chuva e sangue era um antigo pistoleiro do Pará que havia ensinado o seu ofício a seu único filho, Wagner, esse em seu primeiro trabalho tinha como alvo seu velho pai, ele não poupou o mesmo da morte, isso mostra seu profissionalismo.
Mônica olha para o rosto de Wagner, esse continua sem expressão, mas o olhar tem um certo brilho, ele é um cristão praticante, vai todos os finais de semana a igreja, doa dinheiro para caridade, agora assistindo ao filme Paixão de Cristo de mãos dadas eles se veem como um casal exemplar, belos enamorados curtindo um momento de reflexão sobre Deus, ao final do filme conversam coisas triviais do cotidiano, riem de coisas banais e depois fazem amor com uma extrema paixão. Ao amanhecer Wagner vai embora, Mônica toma seu café quente e pensa no amado, ela vai até a sala e olha para o quadro onde Cristo está crucificado, ela pensa no Deus da trindade, faz o sinal da cruz e vai trabalhar.