segunda-feira, 30 de março de 2020

Breve comentário sobre o filme: O Poço de 2019 da Netflix.


A nova febre do momento é o filme, original da Netflix, O Poço,de 2019 e dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia. Obra de suspense e terror que vem conquistando pelo mal estar, crítica social, violência e retrato da atual sociedade.

Na obra vemos uma prisão vertical, com celas com um buco no meio por onde passa a comida numa plataforma retangular e por onde se pode ver o poço e os andares superiores e inferiores.
O protagonista é Goreng, vivido pelo ator Iván Massagué; que ao contrário de muitos, não cometeu nenhum crime ou foi obrigado a entrar no “poço”, mas escolheu estar ali para ganhar um certificado, parar de fumar e ler um livro; assim diz ele no filme.
Durante a projeção da película, sou antiquado mesmo, percebemos que são dois prisioneiros por cela, e que ficam em um andar, ou nível, por cerca de um mês. E que, a cada mês vão aletoriamente para qualquer outro andar. Detalhe, a comida sai do nível zero, da cozinha, e desce andar por andar pela plataforma, depois de certo nível não sobra mais comida, e quem está no andar inferior come o que restou do andar superior.
A obra é cheia de metáforas religiosas, críticas sociais, e tem uma pegada “gore” de terror gráfico. Seria a prisão uma espécie de purgatório, se parece com o inferno de Dante; seria um panóptico social, uma crítica a má distribuição de renda e alimentos? Difícil ser simplista e objetivo aqui.
Cada pessoa que entra pode levar um objeto, há quem leve um cachorro, armas, tacos d emadeira; o primeiro companheiro de Goreng leva uma faca; já o protagonista leva um livro: Dom Quixote. E coincidentemente o protagonista nos lembra o sonhador, utópico cavaleiro, ele entra querendo mudar as regras, acha que se pode dividir com mais justiça os alimentos e fica horrorizado com a violência; como estupro, canibalismo dentre outros que presenciamos na obra.
À medida que Goreng desce ele presencia a selvageria e barbárie, o que a animalização, fome e desespero pode fazer com um ser humano privado do mínimo de dignidade. E a medida que sobe que sobe sente como muitos podem ser egoísta, gulosos, mesquinhos, maldosos, e desgraçadamente antissociais.
No filme há muitas menções a religião, crenças, o próprio Goreng é visto em algum momento como um messias, mas ao contrário da figura do cristianismo ele cede as tentações, se torna também selvagem, mas sempre mantendo o mínimo de humanidade, e ao final, tenta mudar a sociedade como um revolucionário marxista e  anarquista.
Utopia ou realismo, ver o mundo apenas como ele, ou como deveria ser? Parafraseando Cervantes autor de Dom Quixote. Subir, descer, passar fome, ter o corpo mutilado, ter que provar carne humana, sentir a sujeira, a putrefação social, corporal, ver a defecação sobre o corpo de outro ser humano; escatologia total que coloca a visão mais otimista na mira de disparos pessimistas.
O filme é obviamente uma crítica social, não fica claro se é somente ao capitalismo, serve como uma luva também ao capitalismo de estado, o dito comunismo; mas se encaixa melhor na má distribuição de recursos do neoliberalismo. Os de baixo comem o resto, e se não há resto se devoram, os do meio saboreiam a saliva, excrementos e a pouca comido que chega até eles. E rancorosos descontam urinando nos debaixo, os de cima ao invés de dividirem justamente os alimentos se fartam e comem além da conta, pois foram desprezados quando estavam no fundo do poço, e agora querem aproveitar.
Um elemento que é explícito é a burocracia, o controle; mesmo quem participa da organização do poço desconhece suas peculiaridades e detalhes. Uma mulher que faz parte da organização entra no poço, mas não sabia o quanto era cruel, sórdido e desumano. Ela acredita na solidariedade, mas viu que para ter mudanças tem que haver lutas; as pessoas do andar inferior ao dela só passaram comer menos para sobrar mais comida aos outros quando Goreng ameaçou defecar na plataforma com a comida.  
Ao fim do filme fica a indagação se foi tudo um sonho, estavam mortos, era delírio; e se foi real há esperança, ou a sociedade não muda e seremos sempre esses seres desafortunados vivendo em uma sociedade controlada e burocratizada, com má destruição de recursos, egoísta e produtora de violência? A esperança é uma criança adormecida no fundo do poço, quem assistiu o filme sabe do que estou falando.