terça-feira, 29 de setembro de 2020

A cor negra dos homicídios no novo Atlas da Violência 2020

 

   Dia 27 de agosto de 2020 foi publicado o novo Atlas da Violência, nele encontramos dados sobre homicídios e, pasmem, temos a constatação que houve diminuição no número de homicídios nos anos de 2017 e 2018.

   No próprio Atlas há hipóteses para essa diminuição, como trégua na guerra entre facções criminosas, principalmente PCC e Comando Vermelho; envelhecimento da sociedade, com óbvia diminuição do número de jovens, correlação com estatuto do desarmamento etc.

   Mesmo tendo diminuído há estados onde a diminuição não foi tão intensa, e há tipos de homicídios que cresceram; esse é o caso do homicídio de pessoas negras. No Brasil os negros representam 75,7% dos homicídios, sendo 3,7 para cada 100 mil habitantes. Além disso temos uma diferença na diminuição de homicídios entre não negros e negros como atesta o próprio Atlas:

  Ao analisarmos os dados da última década, vemos que as desigualdades raciais se aprofundaram ainda mais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros e não negros. Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%, conforme ilustrado pelo gráfico 18.

   A questão do negro passa pelo racismo, logo por uma realidade concreta racista e não apenas por uma ideologia racista. O racismo surge com a expansão marítima e comercial europeia, com a “necessidade” de mais mão-de-obra para as colônias, do contato crescente entre as raças; e da opressão e mercantilização de uma raça sobre a outra.

   Com a abolição da escravidão no século 19 no Brasil não tivemos a abolição das relações excludentes dos negros, e nem da ideologia racista, que é alicerçada nas relações racistas e cria a ideia, a inversão da realidade, que coloca o negro como inferior, marginal, preguiçoso, criminoso etc. Logo, os negros foram socialmente jogados na sarjeta, não foram incluídos no mercado de trabalho, na meritocracia, no serviço público; não tiveram o mesmo acesso ao ensino de qualidade.

   Claro que hoje há negros em todas as classes sociais, mas são predominantes nas mais baixas: na proletária, no lupemproletariado e no desemprego desclassificado.

   Também foram varridos pela vassoura higienizadora da urbanização para as periferias das cidades, como na destruição dos cortiços no Rio de Janeiro para construções de viadutos, bulevares e espaços para o comercio.

   Nesse diapasão os negros formam grande parte da população atual com baixa escolaridade, morando nas periferias com paupérrimos salários, transporte e saúde pública precária; são pessoas que engrossam as fileiras do subemprego, do desemprego e do mundo criminal mais perseguido jurídico, político e policialmente: roubo, furto, trafico de drogas; diferentemente dos crimes mais usuais de brancos ricos: estelionato, crimes de “colarinho branco”, como a corrupção, por exemplo.

   Com as más condições educacionais, urbanas, de empregos temos a soma da ideologia racista que coloca a cor da epiderme relacionada a preguiça, mau caráter, tendências criminosas etc. Nesse caldeirão são fervidas na mesma água negros, periféricos, jovens e com baixa escolaridade autores e vítimas de homicídios, já que o perfil é o mesmo.

   Enquanto os negros formam a maioria dos enlatados no sistema carcerário, que por si só não resolve o problema da criminalidade e violência, são também a maioria das vítimas de homicídios por uma máquina adaptada para moer carne preta. São esses negros, pretos e pardos conforme o Atlas e o IBGE, que são cooptados pelo tráfico nas bocas de fumo, que evadem das escolas, que tem dificuldade no acesso a empregos dignos e acabam no subemprego, caindo nos braços de fações criminosas e são os principais alvos da violência estatal policial.

   Deixo aqui um parêntese, há mortes de jovens negros por policiais que são justificáveis, mas isso não justifica a ‘necropolítica” do Estado, que fecha os olhos para os jovens negros sem perspectivas, sem empregos, marginais que engrossam as estatísticas mortíferas.

   Se não houver políticas públicas que visem a educação, melhorias urbanas, criação de oportunidades de emprego, reestruturação do sistema penitenciário com uma abordagem após saída do detento; e claro mudanças na sociedade que engendra a violência contra todos, mas principalmente contra o negro, teremos sempre essas melancólicas notícias e esses frios dados sobre a frieza da indiferença racial.

   Não bastam mudanças “culturais”, se não tivermos mudanças nas relações concretas que possam abolir o racismo, que a longo prazo só terá êxito com a extinção da sociedade classista racista. 

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Texto publicado originalmente no jornal Diário da Manhã em 26 de setembro de 2020.