sexta-feira, 5 de abril de 2013

O AMOR E O SANGUE.



As paredes do quarto eram pálidas, não transmitiam emoção, ela olha as roupas de cama sem brilho e sua roupa sem vida, nada alegra seu coração, o soro pendurado, o velho sonolento no leito ao lado, palavras silenciosas, monólogos mentais, ela dialogava com a janela, dela saia um pequeno raio de sol, tímido como uma virgem. O ar pesado pesa sobre sua cabeça, Márcia olha para o espelho do banheiro, ela sorri amarelamente, suavidade de ânimo, voltando ao seu leito ela pensa no beijo, no abraço daquele homem que tanto se parece com ela, mas ele é tão frio.
O livro de Jó parece interessante, o sofrimento humano fica pequeno diante dos desígnios de Deus, o velho testamento traz uma justiça mais sanguinolenta, mais feroz, menos “paz e amor” do novo testamento, se Jesus tivesse nascido naquela época ele iria crucificar ao invés de ser crucificado. O crucifixo fixado nos corações traz a lembrança de vidas amargas, de esperanças leitosas, de amores corrosivos, a tristeza com a história de Jó é aliviado com o sorriso daquele homem ao lado, Márcia o conhece, já se falaram algumas vezes, ele é simpático, sorriso discreto, ela parece estar apaixonada por ele, apaixonada pelo magnetismo do olhar de Walter. No hospital Márcia se lembrava daquele dia na igreja, o velho vomitando não tirava o prazer de momentos tão agradáveis, o sangue saindo e se misturando ao soro, ela já viu coisa pior, o beijo de Walter agora era sentido mais uma vez, ela adormece com a dor que a fez dar entrada no pronto socorro, a dor de Jó é só uma metáfora para discussões filosóficas.
As folhas coloridas caídas no meio do caminho, um ar romântico no passeio de domingo, Walter falava coisas agradáveis, segurava com firmeza a mão de Márcia, ela estava convencida que havia encontrado seu grande amor, sempre nos convencemos de algo e sempre esse algo depois nos coloca em dúvida, ela não duvidou, a segurança leva ao inseguro respirar, ela respirava o ar do amor, o amor precoce de juventude.
O corredor parece um funil para a eternidade, olhando para ele ela se perdia, a fraqueza também contribuia para a vertigem, enfermeiras andando para todos os lados, soros, remédios, curativos, tudo registrados pelos olhos lânguidos de saudade, fracos de verdade, sem lágrimas, Márcia olhava para o corredor do hospital como se contemplasse a nave espacial de 2001, não havia mistério naquele prédio, havia mistério com o homem que lhe jurou amor eterno, seu jeito de sorrir era estranho, ele era bom demais, amável demais, tudo que transborda é preocupante, suas qualidades transbordavam e inundavam os rios de dúvidas, ela não percebia nada, nadava nas águas do amor, do prazer até se afogar no amar de tanto amar e remar para as praias feias do racional.
Com as mãos amarradas ela assistia a tudo, aquele homem tão amável e sensual agora segurava uma faca com maestria, o brilho de seus olhos eram demoníacos, ele não suava, tremia ou vacilava, frio como uma geleira, gelava sua vítima com seu turbinado ser, sua expressão maníaca. Com a faca Walter retalhou a carne da mulher amarrada na cama, ainda viva ela gritava, o sangue espirrava no rosto de Walter, esse sentia uma alegria mórbida com os pingos vermelhos no seu corpo, Márcia amarrada a uma cadeira assistia tudo horrorizada, depois de retalhar sua vítima, agora morta, o amoroso amante tira a roupa de Márcia e a obriga a fazer sexo com ele ali mesmo naquele açougue humano, enquanto  Walter gozava sobre o sangue Márcia chorava, sua lágrimas refletiam o vermelho do cenário, a cena se repetiria mais três vezes até serem descoberto em uma cabana, Walter saiu algemado de lá com uma tranquilidade divina, Márcia deixou seu amor retalhado junto das carnes das vítimas.
Uma música toca baixinho, o velho escuta aquele tango como se ouvisse a voz de um professor, Márcia com seu jeito reservada deitada virada para a parede ouvia a música que chegava até ela com uma melancolia serena, as lembranças dos vermes passeando sobre os corpos das vítimas de Walter ainda eram presentes em sua mente, eles bailavam ao som do tango, o amor também seria um verme, Walter seria um verme? Aqueles vermes que escorriam pelos corpos mortos não eram maus como Walter, não eram arrebatadores como o amor, eram simples, eram sobreviventes, Márcia era uma sobrevivente, ela não chorava mais, não amava mais, nunca mais amou, nunca mais sentiu prazer, se tornou fria como Walter, mas não matava pessoas, matava sentimentos que brotavam sem consentimentos em sua epiderme e transpirava o rancor para longe dela. Walter a salvou de um mundo passional e a jogou na cela do mundo racional, ela imaginava o sol lá fora, a beleza do mundo não passa de desculpa para não vivermos de forma mais pragmática, Walter era como Jó agora, apenas uma metáfora.