sexta-feira, 23 de março de 2018

DIREITOS HUMANOS SEM IGUALDADE?

Guilhotina, eis a primeira palavra que me vem à cabeça quando penso em Revolução Francesa. Cabeças rolando, reis sendo decapitados, sangue, o povo na rua, tomada da Bastilha. Fome, estupros, invasões de propriedades de nobres, ditadura dos jacobinos, mais sangue, mais cabeças rolando, volta conservadora, império Napoleônico, mais nobreza no poder, mais conservadorismo, um eterno retorno nobiliárquico até a definição da burguesia no poder com sua indústria, arte, ideologia e os lemas famigerados: igualdade, liberdade e fraternidade.
Quando reflito sobre direitos humanos esses lemas brilham como florescência no escuro. O artigo 5º da Constituição Brasileira parece ser a utopia criando vida e borbulhando “normativamente” a igualdade, a liberdade e a fraternidade burguesa. Quando leio sobre direitos humanos a impressão que tenho é que são direitos burgueses herdeiros dessa revolução, principalmente pela questão da Liberdade.
O crepúsculo fecha o dia, raios alaranjados do sol passeiam pela estética melancólica do final da tarde e, olhando para essa imagem, vejo algo que me lembra filmes de ficção científica. Filmes que trazem o brilho solar meio eclipsado para depois mergulhar nas trevas góticas do pessimismo pós-moderno e cyberpunk, onde as pessoas não tem liberdade política, são dominadas pelo Estado Leviatã, por corporações empresariais ou por máquinas como no futuro do “Exterminador do Futuro” e “Matrix”; porém, algo me chama a atenção, a realidade brasileira, retorna a revolução burguesa, os lemas, a constituição, um redemoinho caótico de pensamentos faz bailar em minha mente as incoerências de nossa tradição, constituição e realidade, pois falamos tanto em liberdade, em direitos políticos, em democracia, em participação popular, em respeito as diferenças, mas poucas vezes vejo falarem sobre a fome, sobre desigualdades sociais, sobre a miséria no mesmo contexto. Pode haver participação popular sem educação? Pode haver liberdade política com escravidão proletária? Pode haver democracia numa ditadura social onde a maioria da população está presa nas garras da pobreza, da falta de oportunidades, educação, cultura e dignidade?
Todas as indagações acima me levam ao lema da Igualdade, que, na perspectiva burguesa liberal, é igualdade de oportunidades, tendo relação com a liberdade. Mas e a igualdade socioeconômica? Essa foi defendida pelos socialistas, que veem a Revolução Francesa como limitada aos interesses da classe empresarial, com uma liberdade que nega a miséria, as diferenças econômicas. Para os socialistas não há democracia sem uma melhor e igualitária distribuição de renda e participação popular.
Vivemos em um país capitalista onde reina uma profunda desigualdade social, miséria, fome, seguida de perto pela falta de educação, pela violência gritante e por descrença da maioria pela política, logo, a democracia é democracia de poucos “livres”. Como falar em direitos humanos quando não se tem o básico da dignidade humana como habitação, saúde, educação, bom salários e comida? Não acho que direitos humanos sejam obrigatoriamente um componente político socialista, porém se limitar apenas ao discurso liberal e fechar os olhos para a realidade socioeconômica é não só ser conivente com a exploração, desigualdade e miséria, como também agente passivo do processo que retira os direitos da maioria dos humanos. Direitos Humanos sem igualdade e liberdade não são direitos e muito menos contribuem para a fraternidade.
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Postado originalmente em:http://www.policiacivil.go.gov.br/artigos/direitos-humanos-sem-igualdade.html

VIOLÊNCIA E TOTALIDADE SOCIAL

“O caos reina”. Essa frase parece ser tirada da fala da raposa no filme ‘Anticristo’, de Lars Von Trier, e esse é o sentimento coletivo imerso em notícias sanguinolentas, chocantes e sensacionalistas disseminadas pelas mídias escritas, televisionadas, no ciberespaço da internet, e mesmo no “boca a boca”, nos bares, escolas, locais de trabalho e no lar. A violência é assunto preponderante nas rodas de conversas, noticiários de jornais, programas eleitorais; é a coqueluche do momento. Mas o que é violência, e como ela se dá na totalidade social?
A palavra violência traz a ideia da profanação, no sentido religioso, e de transgressão, no sentido jurídico. A violência pressupõe relação, algo é atingido, violado por outro, porém isso não pode ser dito da natureza, pois é uma relação social, e não natural, ela se dá entre pessoas, onde uma, ou várias pessoas, impõem algo a outra pessoa, ou pessoas, contra sua vontade. Como bem colocou o sociólogo Nildo Viana em seu artigo ‘Violência, Conflito e Controle’, “podemos então definir a violência como relação social caracterizada pela imposição realizada por um indivíduo ou grupo social a outro indivíduo ou grupo social contra sua vontade ”.
Conceituar não basta para desenrolar esse novelo que obnubila e obstaculiza um entendimento mais clarividente do problema. Temos que avançar na discussão. Há um debate sobre o caráter natural e social da violência, há aqueles que corroboram com a ideia da violência enquanto algo natural, instintual, e aqueles que a vêem como social, cultural e histórica.
No primeiro grupo temos autores como Freud, que naturaliza a violência: para o mesmo há o instinto de morte, Tanatos, que luta com o instinto de Eros, o erótico. Nessa perspectiva a agressividade é instintual, própria da natureza humana. Outro intelectual que dialoga com essa ideia natural de violência é o inglês Thomas Hobbes, autor do clássico da filosofia política ‘O Leviatã’. Hobbes relata em sua obra que o ser humano é naturalmente violento e egoísta e com isso justifica a necessidade de um Estado forte e autoritário para barrar essa agressividade nata dos humanos, pois “o homem é lobo do homem”. Sem esse Estado forte e absolutista poderíamos voltar ao estado de natureza de guerra de todos contra todos.
Outra perspectiva nesse caleidoscópio textual é o da violência originada do social. Aqui ela é vista como fato social. Nesse diapasão tem destaque Durkheim, sociólogo que defende que o todo é maior que a soma das partes e que dá total primazia da estrutura social sobre os indivíduos. A abordagem dele mostra a solidariedade como algo central, seja a mecânica, onde a individualidade é pequena (exemplo das tribos indígenas), ou da sociedade industrial moderna, chamada de orgânica, com uma maior individualidade e divisão social do trabalho. Para o sociólogo francês, o crime é uma ofensa aos sentimentos fortes da coletividade, quando atinge níveis intoleráveis há anomia, fraqueza das instituições e moral, nesse caso ouve falha na regulação, no controle social. A violência aqui é vista como um estado de anomia.
A teoria materialista histórica e o método dialético de Marx partem das relações sociais de produção, das relações concretas, para analisar a sociedade. Nela, o conflito de classes faz surgir o controle social, dentre ele o Estado, que regulamentará as relações sociais, com seus conflitos e violência. Porém, o próprio Estado, detentor do monopólio da violência, nas palavras de Max Weber, será gerador de violência, como no caso das desapropriações de ocupações urbanas e rurais, criminalização de movimentos sociais e etc.
Com a teoria marxista constatamos também que a separação do proletariado dos meios de produção, a precarização das relações sociais com o aumento do exército de reserva, o lupemproletariado, o aumento das desigualdades sociais levam ao aumento da violência, da procura pelo ganho fácil e pela agressividade nessa busca. Não podemos aqui corroborar com o determinismo de que a pobreza é causa do crime e violência, mas sim a desigualdade, o aumento da distância entre ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e negros; claro que o estado de miséria, más condições de vida condicionam também o aumento do crime e da violência, mas não se reduz à pobreza.
A mercantilização da vida, a burocracia e o sentimento de competição também levam ao aumento da criminalidade e violência. Veja a competição no trânsito ligado ao estresse das grandes cidades relacionando à violência com atropelamentos, assassinatos em brigas de trânsito. Mesmo entre ricos é possível vermos a mercantilização, competição e busca por status influenciando a vida criminosa; não basta ser rico, tenho que ter mais que o outro, tenho que ter a vida que a publicidade vende e acesso aos bens mercantilizados, que só posso ter ganhando muito dinheiro.
Até a violência mais passional, como a violência contra a mulher, racismo, homofobia, tem relação com a desigualdade e luta de classes que se somam à educação machista, racista, a problemas psicológicos, à história de vida dos indivíduos, dentre outros fatores. Como não notar a relação entre desigualdade no mercado de trabalho, de oportunidade como uma das determinantes da violência contra o sexo feminino?
A violência não é natural, ela é fruto das relações sociais, da luta de classes, da desigualdade, da dominação e exploração. Ela é fruto, de múltiplas determinações do social, mas a fundamental é a desigualdade.
Por fim poderíamos concluir que não basta investir apenas em policiamento, seja ostensivo de patrulhamento, ou o de investigação, pois esses lidam apenas com as consequências, e não com as causas da violência e criminalidade; eles não vão ao âmago dos problemas da violência, que tem suas raízes na desigualdade social, na competição da sociedade capitalista, na falta de oportunidades e educação. Além disso, a precariedade e mercantilização da vida humana, tendo essa deixado de ter dignidade, valendo por si mesma, tendo agora preço como qualquer outra mercadoria do mercado, como diria Kant, também contribui para o aumento da violência e criminalidade.
Entendendo o que é a violência e suas causas, entendemos também que o problema passa pela totalidade social, e não apenas em sua fragmentação, seja ao investimento em educação, policiamento ou outra medida separada, fragmentada e sem a teleologia de mudança social.
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Postado originalmente em: http://www.policiacivil.go.gov.br/artigos/violencia-e-totalidade-social.html