sábado, 14 de maio de 2016

A DANÇA DA MORTE: FILME "ERA UMA VEZ NO OESTE" E O DESCARTE DO SER HUMANO.



A marcha inexorável do progresso atravessa as nuvens encantadas, perfura as rochas obsoletas da natureza e naturaliza a indiferença, a marcha que arrasta séculos de gritos, milênios de suspiros, uma marcha que não pode ser curva, é uma linha reta para o futuro! Uma escada com degraus transparente deixa transparecer o quanto estamos longe do solo, a queda e o retrocesso do progresso faz cair de forma vertiginosa corpos calejados, suados e sangrando de tanto carregarem o peso do mundo iluminista.
Uma luz em meio a névoas, um trem desgovernado que não para na estação, trilho são colocados às pressas, é a locomotiva da civilização trazendo a dominação, a exploração e a riqueza. A marcha para o Oeste, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, foram marchas civilizatórias, expansão de aventureiros que desmataram, dizimaram indígenas e depois abriram espaço para expansão do mercado, estradas abertas para o capitalismo tão selvagem quanto os povos que serviram de tapete para as nobres personas dessas odisseias homéricas.
O movimento civilizacional do capital é indiferente aos indivíduos, só se importa com massas amorfas de consumidores, trabalhadores e produtores, as alegrias, as dores, os orgasmos e o sangue individual não importa, o sistema sim é importante, o único indivíduo que tem status e importância é o deus que unifica todos os demônios em um só nome.  
A morte de uma pessoa é motivo de dor, lamentação, mas, a morte de várias pessoas é apenas estatística; não sofremos pela dor de um escravo, pela morte de um índio, apenas dizemos: foram escravizados milhares de negros, morreram milhares de indígenas, seis milhões de judeus; apenas o número importa, a vida de cada um é supérflua, coisa de sentimentalista barato.
A banalização da vida vem com a banalização da alteridade, o outro é apenas algo para ser domesticado, dominado, explorado ou silenciado, o que importa é nossa cultura, nossa educação, nossas terras, nossas alegrias e, claro, a manutenção da harmonia do cosmos, a conservação do sistema, por isso as pessoas são conservadoras, querem manter o mundo como ele é. E o mundo, como ele é, desumaniza, é diferenciador e surdo para os gritos das pessoas soterradas pelo peso da história, pelos trilhos por onde passam as locomotivas do progresso, esse trem que traz riquezas para poucos e choro para muitos, democraticamente distribuindo mel para as pequenas classes e ferroadas para a multidão de degenerados sem educação, sem lenço ou documento.
O filme ERA UMA VEZ NO OESTE mostra essa marcha impiedosa da locomotiva do progresso, ela vem em velocidade acelerada trazendo em seus vagões a moda, a tecnologia, mas também o regresso, a barbárie a indiferença à vida. Na obra prima de Sergio Leone vemos um homem em busca de vingança, sem nome o personagem de Charles Bronson é conhecido apenas como “o gaita”, pois toca e carrega uma gaita consigo, essa gaita, inclusive, tem uma relação forte com seu passado, quase catártica, traz em suas melodias as dores desse passado. Em busca de vingança “o gaita” vai atrás de Frank, um cowboy que trabalha para um empresária ligado a construção de uma ferrovia, Frank vivido pelo ator Henry Fonda, faz trabalhos “sujos” limpando o caminho para os trilhos do progresso.

Com uma trilha contemplativa, épica e contundente de Ennio Morricone o filme é um caminhar soberbo por paisagens empoeiradas, por personagens em busca de felicidade, redenção e vingança, no meio dessa américa borbulhante temos a personagem Jill, uma prostituta que se casa com um irlandês e vai morar com ele em sua fazenda, chegando na mesma se depara com o corpo do marido e de seus filhos, fruto do primeiro casamento, mortos,  ela decide ficar nas terras, logo, passa a ser um dos obstáculos aos lucros e sucesso do empresário capitalista, e passa a ser também um problema a Frank, mais uma sujeira a ser limpada de forma civilizada, com tiros! Entre bandidos, como Cheyenne, fugitivo da justiça que irá ajudar Jill, gaita e assassinos como Frank passeamos em enquadramentos que destacam rostos que toma contam de toda a tela, olhos em super closes que brilham com a luz do sol e refletem o inferno das almas nesse inferno empoeirado do velho oeste.

Todo o filme é, não somente, uma marcha civilizatória e sanguinária como também um poema violento sobre essa marcha, mas, acima de tudo é uma dança da morte, uma grande dança que nos prende do início ao fim na expectativa de ver a morte purificar o mundo e silenciar os gritos de horror e dor. O progresso esmaga sonhos, assim como traz esperanças, é indiferente a pessoas, indivíduos, não derrama lágrimas ou se importa com a morte de pessoas, apenas coloca números em estatísticas, por isso nos identificamos tanto com o gaita e sua música, pois ela é um grito de alerta às dores do indivíduo e, a morte no duelo não é apenas mais um número, ou mais um homem que morre, mas é a coroação de toda uma odisseia em busca de paz, não é a toa que o personagem de Frank diz a Charles Bronson que é diferente do empresário da ferrovia, pois, este não se importa em saber quem é o gaita, mas Frank sim. Tanto Frank como nós passamos o filme inteiro querendo saber que é aquele homem com uma gaita e por que ele quer se vingar de Frank; a descoberta do mistério é a descoberta da dor e a consciência da mesma nos faz viver melhor e superar as desgraças da vida, desventuras da alma humana que são aumentadas pelo progresso, pela indiferença do sistema que se alimenta de números e descarta seres humanos.


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