A marcha
inexorável do progresso atravessa as nuvens encantadas, perfura as rochas obsoletas
da natureza e naturaliza a indiferença, a marcha que arrasta séculos de gritos,
milênios de suspiros, uma marcha que não pode ser curva, é uma linha reta para
o futuro! Uma escada com degraus transparente deixa transparecer o quanto
estamos longe do solo, a queda e o retrocesso do progresso faz cair de forma vertiginosa
corpos calejados, suados e sangrando de tanto carregarem o peso do mundo
iluminista.
Uma luz em
meio a névoas, um trem desgovernado que não para na estação, trilho são
colocados às pressas, é a locomotiva da civilização trazendo a dominação, a
exploração e a riqueza. A marcha para o Oeste, tanto nos Estados Unidos, quanto
no Brasil, foram marchas civilizatórias, expansão de aventureiros que desmataram,
dizimaram indígenas e depois abriram espaço para expansão do mercado, estradas
abertas para o capitalismo tão selvagem quanto os povos que serviram de tapete
para as nobres personas dessas odisseias homéricas.
O movimento
civilizacional do capital é indiferente aos indivíduos, só se importa com
massas amorfas de consumidores, trabalhadores e produtores, as alegrias, as
dores, os orgasmos e o sangue individual não importa, o sistema sim é
importante, o único indivíduo que tem status e importância é o deus que unifica
todos os demônios em um só nome.
A morte de uma
pessoa é motivo de dor, lamentação, mas, a morte de várias pessoas é apenas estatística;
não sofremos pela dor de um escravo, pela morte de um índio, apenas dizemos:
foram escravizados milhares de negros, morreram milhares de indígenas, seis milhões
de judeus; apenas o número importa, a vida de cada um é supérflua, coisa de
sentimentalista barato.
A banalização
da vida vem com a banalização da alteridade, o outro é apenas algo para ser
domesticado, dominado, explorado ou silenciado, o que importa é nossa cultura,
nossa educação, nossas terras, nossas alegrias e, claro, a manutenção da
harmonia do cosmos, a conservação do sistema, por isso as pessoas são
conservadoras, querem manter o mundo como ele é. E o mundo, como ele é,
desumaniza, é diferenciador e surdo para os gritos das pessoas soterradas pelo
peso da história, pelos trilhos por onde passam as locomotivas do progresso,
esse trem que traz riquezas para poucos e choro para muitos, democraticamente
distribuindo mel para as pequenas classes e ferroadas para a multidão de degenerados
sem educação, sem lenço ou documento.
O filme ERA
UMA VEZ NO OESTE mostra essa marcha impiedosa da locomotiva do progresso, ela
vem em velocidade acelerada trazendo em seus vagões a moda, a tecnologia, mas
também o regresso, a barbárie a indiferença à vida. Na obra prima de Sergio
Leone vemos um homem em busca de vingança, sem nome o personagem de Charles
Bronson é conhecido apenas como “o gaita”, pois toca e carrega uma gaita
consigo, essa gaita, inclusive, tem uma relação forte com seu passado, quase catártica,
traz em suas melodias as dores desse passado. Em busca de vingança “o gaita”
vai atrás de Frank, um cowboy que trabalha para um empresária ligado a
construção de uma ferrovia, Frank vivido pelo ator Henry Fonda, faz trabalhos “sujos”
limpando o caminho para os trilhos do progresso.
Com uma trilha
contemplativa, épica e contundente de Ennio Morricone o filme é um caminhar
soberbo por paisagens empoeiradas, por personagens em busca de felicidade,
redenção e vingança, no meio dessa américa borbulhante temos a personagem Jill,
uma prostituta que se casa com um irlandês e vai morar com ele em sua fazenda,
chegando na mesma se depara com o corpo do marido e de seus filhos, fruto do
primeiro casamento, mortos, ela decide
ficar nas terras, logo, passa a ser um dos obstáculos aos lucros e sucesso do
empresário capitalista, e passa a ser também um problema a Frank, mais uma
sujeira a ser limpada de forma civilizada, com tiros! Entre bandidos, como Cheyenne,
fugitivo da justiça que irá ajudar Jill, gaita e assassinos como Frank passeamos
em enquadramentos que destacam rostos que toma contam de toda a tela, olhos em
super closes que brilham com a luz do sol e refletem o inferno das almas nesse
inferno empoeirado do velho oeste.
Todo o filme é,
não somente, uma marcha civilizatória e sanguinária como também um poema
violento sobre essa marcha, mas, acima de tudo é uma dança da morte, uma grande
dança que nos prende do início ao fim na expectativa de ver a morte purificar o
mundo e silenciar os gritos de horror e dor. O progresso esmaga sonhos, assim
como traz esperanças, é indiferente a pessoas, indivíduos, não derrama lágrimas
ou se importa com a morte de pessoas, apenas coloca números em estatísticas,
por isso nos identificamos tanto com o gaita e sua música, pois ela é um grito
de alerta às dores do indivíduo e, a morte no duelo não é apenas mais um
número, ou mais um homem que morre, mas é a coroação de toda uma odisseia em
busca de paz, não é a toa que o personagem de Frank diz a Charles Bronson que é
diferente do empresário da ferrovia, pois, este não se importa em saber quem é
o gaita, mas Frank sim. Tanto Frank como nós passamos o filme inteiro querendo
saber que é aquele homem com uma gaita e por que ele quer se vingar de Frank; a
descoberta do mistério é a descoberta da dor e a consciência da mesma nos faz
viver melhor e superar as desgraças da vida, desventuras da alma humana que são
aumentadas pelo progresso, pela indiferença do sistema que se alimenta de
números e descarta seres humanos.