O caminhar bêbado e desastrado dessa
centopeia inorgânica chamada sociedade nos faz refletir sobre os tropeços
alcoolizados desse inseto gigantesco, que parece cada dia mais pequeno frente
ao monumental pessimismo em relação a segurança pública. Antitético a esse
pessimismo é o otimismo conservador dos que acham que medidas mais duras, e o
uso de armas de fogo pelo cidadão comum, irá diminuir a criminalidade e a violência,
não seria aqui contraditória achar que elemento violento diminui a violência?
Um vendaval varre as esperanças, as
mais românticas, as mais entusiásticas, talvez aquela menos ideológica e mais
próxima do concreto a partir das relações materiais de produção e da dialética
sobreviva, ou não. Mas uma coisa é certa, a dúvida, essa incógnita que está por
trás das descobertas, desvelando e tornando verdadeiro até mesmo as mentiras
mais estúpidas, como essa do fogo contra fogo de nossa época sombria que
assombra quem ainda tem uma chama de discernimento nesse eclipse da razão,
nessa dialética do esclarecimento.
Muitas pessoas tem o hábito de separar
a segurança pública da totalidade social, como um ente transcendente e
metafísico, essa fantasmagoria fetichizada passa a agir na sociedade mesmo
sendo separada dela, como um deus hebreu, ou um Et “spielbergiano”.
A segurança pública faz parte de uma
totalidade e tem múltiplas determinações, assim como a violência, o crime, o
judiciário, as artes, a família, times de futebol etc. Dentro dessa perspectiva
no caleidoscópio do social podemos afirmar que ações contra a violência e
criminalidade, que não passem pelas determinações delas, como educação, má
distribuição de renda, legislação, o Estado, a ideologia da classe dominante, a
cultura patriarcal e machista, visão conservadora de competição acima de
tudo, manutenção das diferenças classista, respostas violentas ao desvio
social, e mais algumas que não cabe agora citar pelo espaço aqui já exíguo;
ficaria no mínimo pobre, pois sem olhar para a totalidade que faz parte a segurança
pública não podemos ter ações totalizantes sobre violência e crime, caindo nas
armadilhas do micro, das reformas, e o pior, do fetiche da violência como
resposta para os problemas sociais frutos da violação, da precariedade da
vida.
Poderíamos listar aqui uma infinidade
de pensamentos, ações e propostas descabidas e separadas de uma análise mais
profunda da sociedade no âmbito sociológico, histórico, criminológico e
jurídico; mas iremos nos ater a uma proposta polêmica, o armamento da população.
Muitos são os que proferem palavras mortíferas contra a indolência do Estado no
controle social da criminalidade, dentre essas vozes há aquelas que acreditam
que armando a população teremos defesa contra assaltos, para ficar apenas em um
tipo de crime. Essas pessoas se esquecem que o armamento da população leva ao
aumento de armas circulando, mais armas leva a mais mortes, mais suicídios,
mais homicídios em brigas de torcidas organizadas, em brigas de trânsito; mais
feminicídio, mais crianças armadas em escolas ceifando vidas juvenis.
Armar a população é dar munição para
o canhão da violência, seja ela de trânsito, doméstica, político, conflito agrário,
ou mesmo bullying escolar. Não se apaga um fogo atirando álcool, dessa forma aumentamos
o incêndio e nos embriagamos com ideias desconexas com a realidade social, nos
levando a dar passos bêbados como o da centopeia desgovernada na ladeira da
modernidade.
A razão separada do afetivo e de análises
mais amplas e profundas nos leva ao irracional, ou a razão instrumental, que
torna a razão apenas um meio, um instrumento de finalidades desumanas, mercadológicas, estatais, violentas, que não
veem o ser humano como fim em si mesmo, mas como meio, sem dignidade, mas com
preço, como diria Kant.