quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A desgraça da razão, e a graça racional ao som de Samuel Barber



Em preto e branco algo acontece nas linhas que são urdidas e traçadas no caótico pensar, palavras enérgicas, uma atmosfera sideral cai nesse fosso descomunal e insípido; um grito, o horror, a dor, a guerra; a segunda, depois o Vietnã, os morros do Rio de Janeiro, agora a fome, a força inefável dos braços desses deuses que nos tornaram ateus, descrente nessa luz do século XVIII, dessa invenção burguesa.

A segunda guerra mundial, que mundialmente fez vítimas, localmente sangrou corpos, e individualmente deixou marcas, é um marco no que diz respeito descrença na razão, no progresso, na sociedade iluminista. Se já haviam críticas ao racionalismo, elas agora fazem coro a uma rajada de metralhadora epistemológica, discursiva e quase raivosa de pessoas que não acreditam mais no iluminismo.

A mesma tecnologia e ciência que cura doenças, trazem desgraças, que ajuda no aumento da produção agrícola, também nos enchem de doenças devido aos agrotóxicos, as gorduras saturadas; a ciência que prometia, juntamente da razão, nos emancipar e libertar, aprisiona, colabora com mortes e desigualdades sociais. Como não dar apoio aos ataques ácidos desses pós estruturalistas que abalam as estruturas do iluminismo?

A música de Samuel Barber toca fúnebre, baixa e melancólica, imagens de pessoas ensanguentadas, crianças correndo nuas cheias de feridas em seus corpos, mulheres sendo estupradas, homens torturados, no corpo e na alma; conspurcados na epiderme da dignidade, que já nem é mais humana, nem dignada, é apenas um buraco negro no infinito universo sem sentido.

As guerras são frutos da política, da ação racional humana, a barbárie que traz a selvageria bélica nasce das entranhas da civilização, essa mesma que se gaba de ouvir Chopin, comer de garfo e faca, de não soar o nariz à mesa de jantar; essa mesma civilização cospe morte, usa a ciência que de neutra, senhor Weber, não tem nada. Cientificamente matamos, roubamos o mais valor dos trabalhadores, tiramos oportunidades e fazemos a festa claustrofóbica, o cogumelo atômico que cega a mente democrática.

Escadas mágicas, o progresso não é simplesmente marcha de ascensão a uma vida mais livre, igualitária, o progresso capitalista é uma dança macabra, cheia de passos marcados, de desigualdade, com sons aguerridos como os de Hiroshima e Nagasaki.

Sem a razão somos apenas bestas, é a razão que assume os riscos de achar soluções para nossos problemas, porém, isso não é o caso de uma razão instrumental, utilitarista, que nega a dignidade humana, o afetivo, e só pensa em números; conservadora, que quer manter o mundo tal como ele é; pragmática que não pensa a longo prazo, imediatista como espirro literário; essa razão não libertária, é mortífera; desumana e sanguinária. Mas jogar fora a criança racional com a água da bacia instrumental, água turva que que transformas o humano em ferramenta, isso não é válido.

O caleidoscópio do social, um coro celestial nesse mundo material, bárbaras e reluzentes explicações sobre esse eclipse da razão, eis a maratona que levanta a poeira nos desertos do real, flui nos rios que desaguam em mares futuros, temos que lutar contra essa barbárie civilizada, mas sem cair no irracional, no bestial.

Soldados catatônicos, mendigos pelas ruas progressistas, fome em meio a abundância, abundam munições, gritos e sangue nas trincheiras sociais, nos campos de guerra, nessa irracional campanha pelo absurdo, reificação do humano. Ulisses com cordas cingindo seu corpo, os remadores com ceras nos ouvidos, odisseia desigual, um preso, mas ouvindo sons libidinais, os outros surdos e remando, levando o progresso e seu líder para aguas tranquilas, mas em prazer.

Vitrais coloridos, uma música sacra, religião que nos religa ao imaginário, ao que nunca existiu fora da imaginação, minhas lembranças são colocadas nesse carrossel descomunal, incomensurável, fora do tempo e espaço. Mais um coro, vozes de crianças, corre lágrimas pelos sulcos do velho rosto descrente em deuses, entretanto, crente nas possibilidades de uma razão humanizada, libertária; quem sabe em um mundo auto gestionário, sem burocracias, classes sociais? Quixote, “ razão demais é loucura, mas loucura maior é ver o mundo como ele é e não como deveria ser”; acho que foi Cervantes quem escreveu isso, não me lembro mais, hora de findar essas linhas escritas ao som de Agnus Deí, ao sabor de bocas que não beijam ou falam mais, como a caveira nas mãos de Hamlet; ao calor de dias secos do cerrado, sem umidade, humanidade com cifrões, grilhões de vidas mercantilizadas.


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