As lembranças surgem sorrateiramente, pulam por cercas herméticas que obstaculizam
qualquer momento de relembrança, que ânsia em viver de novo o que não mais
existe mais! Carros correndo, trânsito dantesco, o inferno que surge com a
morte do sol que entra no horizonte como quem dança a dança fúnebre; de repente
um pensamento do passado cavalga e quebra a monotonia dessa fila interminável do
congestionamento nasal dessa narina urbana. Me lembro de uma conversa onde fui
apenas observador, nela agentes, e um escrivão, de polícia conversavam com um
delegado; ânimos exaltados, conversa afiada, o bate papo informal que tinha a
forma de tragicomédia versava sobre sindicato único para a categoria polícia
civil, pasmem, existe dois sindicatos para um única polícia, que na prática são
duas; sindicato dos delegados, chefes com salários altos, e um sindicato para a
plebe de agentes, escrivãs, papiloscopistas e demais apêndices de organismo que
carrega o piano dessa valsa triste.
A conversa fluía sob a égide da desconfiança, do embate de ideias
dialeticamente conflitante, e nessa verborragia antitética o delegado solta a
pérola de sua boca: não pode haver um sindicato único, vocês [a plebe] são a
maioria e as decisões seriam sempre a favor de vocês!
A fala do chefe de polícia judiciária não é incoerente, ela é a expressão
ideológica dominante em uma sociedade classista que se assenta na exploração de
uma classe sobre a outra; como pode alguém de uma classe que depende do domínio
ser a favor de igualdade de decisões ao lado da classe dominada? Isso vale para
qualquer instância, veja a questão política burocrática e partidária, não é a maioria
das pessoas que tomam decisões importantes no Estado, é uma minoria de “representantes”
do povo, da massa, que tomam essas decisões; seriam essas decisões coerentes
com os anseios, desejos, necessidades e vontades dos mais pobres, explorados e
miseráveis? Ou seriam decisões, em sua maioria, a favor da manutenção da ordem
e a favor de uma minoria que se mantém pelo domínio, exploração e diferenciação
social?
O caleidoscópio do social reflete vários prismas, incomensuráveis interesses
que se harmonizam em um discurso que prega, com pregos dourados e suaves,
banhados com antitetânica, cantando uma música que hipnotiza, como aquela saídas
das bocas das serieis do mito; nessa canção somos embalados pelos sonhos de uma
justiça alicerçada na ordem da desordem, onde somos convencidos que não podemos
tomar decisões, isso seria anarquia, a elite pensante, econômica e política
fará isso por nós através da subclasse burocrática de políticos, baluartes da
democracia e do bem estar.
A fala do delegado é a fala do coronel, do médico, do comerciante, do
industrial e do bancário; do fazendeiro, do gerente, da classe média que quer
ser burguesa, mas pisa nas fezes juntamente dos porcos do chiqueiro do Capital,
esse ser metafísico que nos digere com sua saliva monetária e nos vomita com as
mercadorias putrefatas de suas entranhas metálicas.
Como vamos deixar um vendedor de picolé, um mecânico, essa massa de
pedreiros, metalúrgicos e vendedores de lojas de calçados, roupas e produtos
eletrônicos tomarem decisões sobre suas próprias vidas? Estapafúrdias são essas
pessoas, mentecaptas e utópicas que acreditam nessa tal democracia fantasmagórica,
onde a base comandaria a vida social. O certo é termos sindicatos diferentes,
representantes políticos, dirigentes, pois somos quadrúpedes não emancipados
necessitados da coordenação do capitalista, do burocrata, do gerente capitão do
mato.
Votar é dar o chicote para um novo capataz, se rebelar é tomar a arma que
dilacera as carnes, conspurca a alma, sangra na madrugada dos mortos. Apoiar
essa ideologia de chefe estatal é apoiar a falta de autonomia e
representatividade do trabalhador.
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