O carnaval
chegou, a folia é quebrada pela chuva fria, pelo tom cinza do feriado que cai liquefeito
sobre nossas almas, corpos suados, ou olhos cheios de luz, cores e pensamentos
libidinosos sobre o presente. Os sons da bateria das escolas de samba não me
atraem, nada contra, apenas não faço parte dos admiradores da folia. Minha
preguiça, meu gosto estético, todo meu ser me leva para outra forma de arte e
diversão, menos enérgica, mais contemplativa. Linhas soltas, palavras
impregnando o escopo do olhar, textos literários, políticos, o que vem à mente
em imagens em movimento toma protagonismo, o cinema.
Filmes
irônicos, secos, românticos, deslumbrantemente quietos, barulhentamente melancólicos,
a maioria dos que foram deleitados por esses olhos tinham um ar incomodo, uma
seriedade contemplativa, mas um ganha destaque pela poesia violenta enredado em
filosofia, nas falas, e em imagens quase congeladas da câmera, é o filme NORTE,
O FIM DA HISTÓRIA.
A ideia de
fim, de morte, de não andar pela seca, quente e devastada terra incomoda, tira o
sono da dormente carne humana, o medo do inevitável se instala, o medo da morte,
é de morte que se nutriu o carnaval sem samba desse que aqui escreve como quem
vê “o moinho da vida triturar os sonhos tão mesquinhos” do sambista Cartola.
Duas mortes foram sentidas e foram simbólicas nesse feriado que é um intervalo
entre o nada e coisa alguma.
A primeira
morte é literalmente física, nesse final de semana morreu mais um colega da
polícia civil, o agente Oscar Shariff, vítima de bandidos que assaltavam um pit
dog no setor Oeste, na cidade de Goiânia. A crítica poderia vir contundente: é
mais um, tantos morrem e ninguém fala nada, só por que é policial se faz tanto
barulho, e por ai vai, mas, vou apenas colocar que, primeiro, por questão
pessoal pesa sobre mim a responsabilidade de falar dessa morte em específico,
em segundo, há um caráter simbólico por trás disso, pois, é um membro da
segurança pública que tem sua vida ceifada, isso mostra como a violência toma
conta da sociedade de forma alarmante e inexorável.
É público,
notório e ululante a banalização da violência em nosso país, governantes não
investem em educação, em saúde, em transporte de qualidade, em meios de
distribuição de renda, sem contar a falta gritante de investimento direto em
segurança pública, polícias sem estrutura, sem efetivo, presídios sem
qualidade, sem condições humanas e sem vagas! Tudo isso contribui para o
aumento de assaltos, furtos, tráfico de drogas e latrocínios como esse que retirou
a vida de Oscar. Por coincidência o aumento da violência se deu com os mandados
eternos do grupo político de Marconi Perillo no poder em Goiás.
A outra morte
foi a de uma instituição, de uma locadora de filmes. Perdemos a Cara Filmes,
perdemos a melhor, mais robusta, cult e diversificada locadora de vídeos de
Goiânia, a morte dessa locadora se deve não a violência marginal, mas sim pela
violência da TV a cabo, internet, downloads, serviços de Streaming como a
Netflix. A concorrência desleal desses serviços ligado a crise econômica
levaram muitas locadoras a fecharem as portas, porém, com o fechamento da Cara
Filmes fechamos também um espaço cultural diferenciado em Goiânia, assim como
aconteceu com o fechamento recente da 2001 em São Paulo.
Qual outro lugar,
além da Cara Filmes, podemos encontrar acervo tão rico de filmes noir, Neo Realismo italiano, Nouvelle Vague
francesa, cinema iraniano, obras primas do cinema mudo, Cinema Novo, diretores
como Arnaldo Jabor, Glauber Rocha, Kurosawa, Godard e etc.?
Quem quer
viver para sempre? A eternidade é tediosa, os vampiros são melancólicos por que
são eternos, o “para sempre” é um endeusamento e um inferno, mas isso não quer
dizer que as coisas devem morrer de forma estúpida, violenta e sem ternura. A
morte de Oscar Shariff mostra a estupidez de uma sociedade sem educação, sem o
mínimo de dignidade humana, o animalesco toma conta dessa selvageria que se
tornou o mundo. O fechamento da Cara Filmes é apenas mais uma porta que se
fecha para a educação cinematográfica, porém entristece também e deixa o
carnaval com um samba cinza, um moinho triturou os sonhos tão simples de ver
bons filmes, de uma vida seguir em frente, como a do Oscar, esse jovem que teve
seus sonhos, potência de agir, amizades interrompidas. Hoje menos arte, menos
um ser humano e mais violência reina onde não tem espaço para a humanidade,
civilidade, apenas a barbárie e filmes comerciais para alegrarem dias sem
entusiasmo, segurança e esperança.
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