A
chuva teimava em continuar, o ar gélido e indecente penetrava pelos vãos das
postas e das janelas, a refrigeração era colossal, glacial. A madruga fria, o
sono pesado, a barrigada vazia, eis o som estridente do despertador, a dor do despertar,
a falta do que sonhar. Acordou. Pedro acordou, mais um ser, mais um número da
estatística do mundo administrado com olhos abertos.
Café,
metade de um pão já endurecido e muito frio, abre a porte, abre o coração e a
mente para a vida lá fora, sai rumo a jornada de trabalho proletária. O escuro,
a chuva, o corpo ainda cansado da labuta do dia anterior, Pedro não pode
reclamar ou descrever psicanaliticamente sua vida, tem apenas que, mecanicamente,
caminhar até o ponto de ônibus, tem que trabalhar, o sistema não pode parar, a
roda deve girar, ele tem que girar o mundo ou será engolido por ele. Foi
engolido pela serpente metálica cheia de vermes humanos, nas entranhas do
animal vai mais um...
A
lotação é mais do que máxima, ultrapassa incomensuravelmente o limite tolerado,
como sardinha Pedro vai imprensado com outros giradores de rodas dentro da lata
alimentícia móvel. Em todas as paradas chegam mais pessoas para apodrecerem
dentro do intestino da besta.
Chegando
no terminal de ônibus Pedro vai pagar “a passagem’ e passar pela catraca,
surpresa, o valor da passagem aumentou, da noite para o dia, uma revolução
aconteceu, um golpe que não é de estado, mas está tirando a governabilidade de
Pedro. Como um vampiro desalmado o cobrador suga o sangue monetário do pedreiro,
melhor, do servente de pedreiro, subcategoria do subemprego no submundo do ser
humano, subitamente somos tragados para a “subdignidade” subindo em um ônibus
sem humanidade, mas com valor de super-humanidade.
Jornal,
notícias, mais do mesmo, espere.... Algo novo, quebradeira, baderna,
vandalismo, criminosos quebram ônibus, incendeiam, mascaras, pedras, polícia,
inferno nas ruas, tudo por conta do aumento da passagem, isso é coerente, podem
fazer isso por conta de um reajuste? Mas não seria também um crime cobrar mais
caro por um transporte ruim enquanto pessoas passam fome, moram em periferias
sem asfalta, sem posto de saúde, sem ao menos dinheiro para o básico?
Quanta
dúvida bombardeia esse Vietnã que é a cabeça de Pedro, mas ele não pode
refletir sobre isso, tem que deitar e dormir, a chuva não para, a vida também
não, tem que acordar as cinco da manhã para pegar o ônibus e ir trabalhar, quem
sabe ele sonhe com um mundo melhor nesse intervalo, quem sabe o mundo acabe e
todos morram nessa noite, quem sabe todos os ônibus foram incendiados, quem
sabe, mas Pedro sabe que que tem que ir embora, o tempo não para, consome a
alma e leva a noite embora e traz a labuta de volta, rodando, girando,
circulando como as rodas do ônibus, com o preço absurdo como a passagem do
coletivo urbano sem urbanidade, para carregar seres sem vida, quem sabe Pedro
não sabe disso.
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