O começo é sempre algo traumático e difícil, não há um antes, a primeira pedra é mais pesada, porém é mais fundamental, começar um texto é carregar as primeiras pedras da construção de um edifício linguístico, uma ponte de comunicação entre um EU, cheio de outros 'eus", cheio de outras falas, textos, insubordinações, tesões, condicionamentos socioeconômicos, culturais e cheio de outras falas, pois se falo é por que falo com a boca dos outros também, outros autores, outras influencias, outras vidas, outras tragédias, outras alegrias, e todas e todos estão relacionadas comigo. Começar é sempre complexo, há algo emperrado entre a consciência e os dedos que digitam freneticamente, preciso soltar logo essa fera antes que ela devore a mim. Escrevo, a fera está solta, a selva do texto, a civilização do ponto final, a barbárie da interrogação, eis um texto nascendo e sangrando, nascendo na monotonia de um domingo, sofrimento, domingo é sofrimento por antecipação, pois já projetamos a segunda, a labuta, a rotina, já pensamos no fim do domingo. O fim é menos traumático, porém mais triste, difícil dissolver essa contradição.
Domingo, coca cola gelada, carne assada, preguiça vespertina, me delicio com Campanella e sua obra prima O SEGREDO DE SEUS OLHOS, filme que me enche de orgulho dos irmãos argentinos, película que consegue balancear melodrama, suspense policial humor e muita emoção sem ser piegas, bobo ou superficial como sessão da tarde. A cena dos estádio continua a encher os olhos e o final continua chocante, choca com emoção, com estupidez, choca com o a crença na humanidade, essa humanidade, sem humanidade, cansei de repetir, humanidade...Domingo também é dia de lembrança, de lembra um outro filme que remete a infância e presente, vida pessoal e profissional e uma reflexão nada ortodoxa sobre a epistemologia artística de pensar o social a partir do tesão e orgasmos cinematográfico. A luz morna do domingo a tarde me remete ao tal filme que mencionei sem nomear linhas atrás, a obra é LADRÕES DE BICICLETAS, outra obra prima, agora é do neorrealismo italiano, o filme retrata a Italiana pós segunda guerra mundial, pobreza, desemprego e a luta pela sobrevivência, a história é simples, um homem consegue um emprego, mas precisa de uma bicicleta, ele a tem, mas durante o primeiro dia de serviço ela é roubada, ai começa a saga, ele e seu filho vão sair as ruas a procura da tal bicicleta. O filme emociona sem precisar de trilha melosa ou cenas alaranjadas de por do sol, apenas a crueza das filmagens nos leva a um mergulho naquela Italiana do pós guerra. Além do mero debate artístico ou sociológico sobre a obra me vejo rodeado pelas lembranças fulminantes que chegam em um redemoinho, infância pobre, sem meios de locomoção, mas havia uma bicicleta, meu pai tinha uma monark barra circular, talvez por isso o filme ganhe um apelo emotivo a mais, além de sua beleza e qualidade enquanto obra cinematográfica.
Lembranças, pedregulhos que caiem de carrocerias e batem nos para brisas de carros, atingem lugares de visibilidade e deixam marcas, outra marca que o tempo me traz são lembranças da época em que trabalhei em uma cidade no norte do estado de Goiás, lá trabalhava na área de segurança pública, sim, essa mesma que tanto se fala mal e que é necessária, essa força que emana do Leviatã, mas que serve também ao cidadão dentro do estômago desse monstro. Nessa cidade quente como os beijos de adolescentes recuperei, melhor eu minha equipe, não se trabalha só em segurança pública, apesar de ter gente que se imagine o Batman, voltando ao assunto, nossa equipe recuperou muitas bicicletas furtadas e roubadas durante o primeiro ano que estive lá, isso causava muita zombaria, gargalhada, a balburdia cômica tomava conta das consciências de colegas que achavam ridículo perder tempo recuperando coisas tão "fúteis" como bicicletas enquanto bancos são assaltados, pessoas perdem milhares de reais fruto de assalto a suas empresas, carros caros são roubados, mas bicicletas? Faz o favor, são cosias tão banais para se perder tempo em procurá-las, pelo menos assim pensam ao maioria dos profissionais em segurança pública que refletem com sua mentalidade burguesa de proteção do patrimônio de quem tem patrimônio.Pobres descamisados vítimas do capital, da falta de oportunidades, da falta de investimento do estado e vítimas violência gerada por tudo isso não são dignos do serviço policial?
A culpa não é da polícia apenas, sabemos que há algo maior que condiciona o serviço não só da segurança pública, mas todos os serviços, a busca desenfreada do lucro, a proteção da propriedade privada, o individualismo, tudo isso acima da dignidade humana, pelo menos dos mais pobres. Agora me volto ao filme, nele vemos o mesmo descaso com o pai de família sem sua bicicleta, seu ganha pão, sua muleta econômica, o moribundo social convalesce sem esperança em um mundo sem remédio para o desnivelamento social. Não basta ser pobre, explorado e sem perspectiva, tem também que ser desqualificado enquanto vítima, e deixar que o Estado se preocupe com os bens mais valiosos de bancários, empresários e da classe média de funcionários públicos. No fundo somos todos ladrões de bicicletas, sonhos e esperança, a sociedade como um todo rouba a pobreza pelo simples fato de ser pobre e não ter voz para abrir os portões da dignidade, prédio fechado aos miseráveis, mas aberto ao industrial, ao juiz, ao doutor sem doutorado, ao amigo do deputado, ao que se alia a "classe", grupo ou simplesmente, pessoas dominantes. Todos são iguais perante a lei, menos os que andam de bicicleta?
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