domingo, 23 de agosto de 2015

Chevrolet, música brega e direitos humanos.

   O Chevrolet antigo desce a avenida com sua lataria enferrujada e com seu condutor com rosto cômico, sua camisa cheia de listras, seu cabelo sem cor definida, seu olhar estapafúrdio para a balburdia da urbe me fazia refletir sobre a excentricidade daquele momento. A música é amais velha do que o carro, ou seria contemporânea? Tocava uma música pop melosa e o som vinha de dentro do Chevrolet, música dos anos oitenta, década perdida, década cyberpunk, década de transição do ditadura para a democracia, que década mais estranha, enquanto ouvia a música e olhava para o homem de camisa listrada e carro enferrujado eu pensava na solidão, na nostalgia e na luta de classes, na melancolia, tudo isso com o pano de fundo de cores berrantes e cenas ecléticas dos filmes de Almodóvar.
   O Chevrolet já sumiu, virou na esquina, eu continuei com meu carro  pelas ruas ensolaradas, paro o carro, um lago, pessoas, verde e barro, grito dentro de mim e ecoa no silêncio de minha consciência o chamado para a caminhada pelo parque, uma caminhada solitária como os heróis (ou seria anti heróis?) dos filmes de ficção-científica, paro em frente ao lago, sua água suja, sua calma...Do outro lado há construções, prédios destinados a ricos e classe média que se esforça para morar como os ricos, trabalhadores sujos , suados e com brincadeiras em voz alta, olho para eles e fico imaginando se eles andam por esse parque, se param para refletir, se tem tempo para isso, a maioria deve ter apenas o ensino fundamental, são negros,pardos e uma meia dúzia  de brancos miseráveis, provavelmente não refletem sobre o neoliberalismo, totalitarismo, a maioria nunca deve ter lido Shakespeare ou Sergio Buarque de Holanda, eles, em sua maioria claro, devem desconhecer a história do capitalismo, sua formação e sua ligação , como os outros sistemas socioeconômicos, como a exploração, dominação, luta de classes e repressão da libido, da igualdade e da solidariedade. A maioria daqueles operários não devem pensar que as alternativas ao sistema também deram errado, vejam a furada que foi, ou é, Cuba, Coreia, a rocambolesca fraude totalitária que foi a União soviética; não os vejo como massa desprovida de inteligência ou vontade, são seres inteligentes, alegres que ocupam lugares que conseguiram chegar dentro do sistema, dentro de suas condições educacionais, econômicas e sociais.
   A caminhada leva o suor aflorar em ninham testa, olho para o céu, deuses devem habitar mundos transcendentais siderais, aqui em baixo humanos miseráveis e prontos para morrerem a qualquer momento continua a respirar até desaparecerem "como lágrimas na chuva", como o replicante de Blade Runner, androides explorados que habitam uma terra escura, pobre cheia de doentes, marginais, pessoas desqualificadas que não podem viajar para outros planetas, pessoas como os operários do outro lado do lago, operários que não podem ter um transporte de qualidade, um atendimento menos medíocre que o do SUS, sem dinheiro para para arte, pagar bons advogados ou frutas importadas, escolas particulares...Sem dinheiro para a dignidade. Em suma, operários são como os humanos do filme Matrix dentro de capsulas e ligados a máquinas, são apenas reserva de energia para girar a máquina, seus sonhos, desejos, momentos pequenos de lazer são programações para poderem continuar trabalhando e movimentando a máquina sem se rebelarem, sem destruírem as engrenagens.
   No caminho de volta não havia mais o brilho do sol, nenhum carro com músicas oitentista passou por mim, carros, pessoas, motos, tudo funcionando mecanicamente; dentro de mim lateja uma indagação inerente ao meu vício a duvidar do óbvio e ululante, por que as pessoas não se rebelam contra a exploração e dominação? Resposta como o comodismo, ideologia, alienação dentre outras deve estar rondando sua cabeça nesse momento, mas essas explicações não diminuem o peso da falta de contestação. Os operários da construção vão voltar para suas casas, jantar, dormir e levantar para continuarem suas vidas de trabalho sem tempo para estudar, sem dinheiro para pagar uma vida melhor e sem perspectiva além da morte no final do túnel, o semáforo ficou verde, continuo a andar, a música oitentista parece voltar a minha cabeça, na rua pessoas falando sobre futebol, novela, briga partidária, ódio e eu cantarolando, mesmo sem saber a língua inglesa, a música LADY IN RED  do Chris De Burgh, a mesma que saia de dentro do Chevrolet enferrujado que vi nessa tarde de reflexão, nostalgia, contestação, romantismo brega e barato, barato  como a vida daqueles operários sem dignidade e direitos humanos.  

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