sábado, 18 de agosto de 2012

SEM PIEDADE.


Os óculos no rosto, o itinerário mostrava que era aquele ônibus que ele deveria pegar, entra no veículo com seu rosto misterioso, senta fleumaticamente na cadeira, olha pela janela e vê lojas em movimento, pessoas ficando para trás, vê um caos urbano explodindo, tudo saindo absurdamente do nada e penetrando em sua alma pelos olhos, olhar o mundo e não ter respostas é uma tragédia que nos acompanha. Ele desce no ponto mais próximo de sua residência, a mulher de vestido estampado desce também, ela sempre desce naquele local, ela mora na mesma rua que Antônio, eles não se falam, não trocam olhares, ele é silencioso demais para isso.
Uma fotografia guardada dentro da bíblia, Antônio a olha com lágrimas quentes a rolarem pelo rosto, nada de breguice, nada de sentimentalismo barato, o homem que olha a fotografia é um touro indomável que matava mulheres, crianças, qualquer ser que respirasse, matava por dinheiro, por raiva ou vaidade. Antônio lê o êxodo, seu livro preferido do velho testamento, aquele Deus Jeová que mata todos os seres que não estão na arca é um exemplo para ele, um espelho de força, Antônio não matava mais de dez anos, havia aposentado, se arrependia por algumas mortes, outras ele não se importava, umas cinco ele festejava, assim era aquele homem que lia a bíblia de forma tão calma.
Mais uma vez ele desce no ponto próximo a sua residência, mais uma vez a mulher de vestido estampado desce com ele, ela se pergunta por que esse homem que mora perto dela não fala com ninguém, ele é tão misterioso, tão excêntrico, sua calma ao andar o faz também tão frio, ela o olha e vê um homem atraente, um homem com a beleza madura dos cinquenta. Andando ao seu lado ela tropeça, cai e machuca o joelho, ele a ajuda a levantar, sem graça agradece o homem de óculos e olhar profundo, ela se emociona com a tristeza do olhar, acaba o convidando para tomar um café em sua casa.
Enquanto Ângela servia o café a Antônio ela pensava como seria a vida desse homem, de poucas palavras, solitário e com uma melancolia perdida no canto do olho, ele bebia o café sem cerimônia, conversaram pouco, ela perguntou sobre sua vida, quase nada ele respondeu.
Com a boca fedendo a cachaça ele chega até o local descrito em uma folha de papel suja, acende um cigarro que brilha sua chama no escuro, a fumaça que sai das narinas se misturam com a escuridão noturna, um certo ânimo apela ao coração de Antônio, mas ele se mantem calmo. Seu revolver se ajusta a sua mão como uma luva, ele entra na casa como se dançasse balé, havia até certa elegância no falar tranquilo, pergunta pelo Carlos, ele estava no quarto, Antônio entra no recinto e com precisão acerta três tiros na cabeça do alvo, o sangue escorria pelo lençol branco, a mulher e as duas criança olham assustadas para aquilo, gritos, choro, Antônio sem piedade mata as crianças e a mulher, ele não treme, seu coração não bate mais forte, ele sai da casa com o cigarro acesso, a fumaça sai bailando pelo ar, aquilo foi a mais de dez anos, agora ele toma café e conversa com aquele mulher de vestido estampado, ela o olha com desejo.
Ele olha para o lado, o corpo nu de Ângela adormecido em seus braços, depois do café veio algo mais quente, os beijos ardentes de Antônio, a pegada forte, o abraço forte, ela não resistiu e se entregou ao homem sem passado, aquele ser de olhar triste que tanto a alegrava agora. Ângela nunca soube do passado de Antônio, esse nunca fez questão de falar, a foto velha que ele guardava dentro da bíblia era de uma mulher, uma que ele amou, amou tanto que a matou em um momento de fúria, esse homem com um passado tão cheio de culpa hoje é apenas uma incógnita, uma pergunta sem respostas.
Na igreja hinos de louvor, Ângela canta e agradece aos céus pela sua vida, pela sua felicidade, Antônio olha fixamente para o teto da igreja, algo bonito, algo transcendente toma conta dele, ele consegue ver algo além, vê dentro de si a imagem de um ser mágico, de um Deus, do mesmo deus judaico da bíblia, o mesmo que ele admirava tanto pela sua justiça, por matar por uma causa, Antônia já havia matado muito, na maioria das vezes por dinheiro, algumas por raiva, mesmo o seu grande amor não foi poupada. Ângela aperta firme a mão dele, saindo da igreja eles passam em frente a um cemitério, Antônio fala para ela bem baixinho que naquele lugar havia uma paz, um conforto, ele se sentia bem em cemitérios. Naquela mesma noite eles transaram e adormecerem como faziam rotineiramente no início do relacionamento.



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