Os óculos no
rosto, o itinerário mostrava que era aquele ônibus que ele deveria pegar, entra
no veículo com seu rosto misterioso, senta fleumaticamente na cadeira, olha
pela janela e vê lojas em movimento, pessoas ficando para trás, vê um caos
urbano explodindo, tudo saindo absurdamente do nada e penetrando em sua alma
pelos olhos, olhar o mundo e não ter respostas é uma tragédia que nos
acompanha. Ele desce no ponto mais próximo de sua residência, a mulher de
vestido estampado desce também, ela sempre desce naquele local, ela mora na
mesma rua que Antônio, eles não se falam, não trocam olhares, ele é silencioso
demais para isso.
Uma
fotografia guardada dentro da bíblia, Antônio a olha com lágrimas quentes a
rolarem pelo rosto, nada de breguice, nada de sentimentalismo barato, o homem que
olha a fotografia é um touro indomável que matava mulheres, crianças, qualquer
ser que respirasse, matava por dinheiro, por raiva ou vaidade. Antônio lê o
êxodo, seu livro preferido do velho testamento, aquele Deus Jeová que mata
todos os seres que não estão na arca é um exemplo para ele, um espelho de
força, Antônio não matava mais de dez anos, havia aposentado, se arrependia por
algumas mortes, outras ele não se importava, umas cinco ele festejava, assim
era aquele homem que lia a bíblia de forma tão calma.
Mais uma vez
ele desce no ponto próximo a sua residência, mais uma vez a mulher de vestido
estampado desce com ele, ela se pergunta por que esse homem que mora perto dela
não fala com ninguém, ele é tão misterioso, tão excêntrico, sua calma ao andar
o faz também tão frio, ela o olha e vê um homem atraente, um homem com a beleza
madura dos cinquenta. Andando ao seu lado ela tropeça, cai e machuca o joelho,
ele a ajuda a levantar, sem graça agradece o homem de óculos e olhar profundo,
ela se emociona com a tristeza do olhar, acaba o convidando para tomar um café
em sua casa.
Enquanto
Ângela servia o café a Antônio ela pensava como seria a vida desse homem, de
poucas palavras, solitário e com uma melancolia perdida no canto do olho, ele
bebia o café sem cerimônia, conversaram pouco, ela perguntou sobre sua vida,
quase nada ele respondeu.
Com a boca
fedendo a cachaça ele chega até o local descrito em uma folha de papel suja,
acende um cigarro que brilha sua chama no escuro, a fumaça que sai das narinas
se misturam com a escuridão noturna, um certo ânimo apela ao coração de
Antônio, mas ele se mantem calmo. Seu revolver se ajusta a sua mão como uma
luva, ele entra na casa como se dançasse balé, havia até certa elegância no
falar tranquilo, pergunta pelo Carlos, ele estava no quarto, Antônio entra no
recinto e com precisão acerta três tiros na cabeça do alvo, o sangue escorria
pelo lençol branco, a mulher e as duas criança olham assustadas para aquilo,
gritos, choro, Antônio sem piedade mata as crianças e a mulher, ele não treme,
seu coração não bate mais forte, ele sai da casa com o cigarro acesso, a fumaça
sai bailando pelo ar, aquilo foi a mais de dez anos, agora ele toma café e
conversa com aquele mulher de vestido estampado, ela o olha com desejo.
Ele olha
para o lado, o corpo nu de Ângela adormecido em seus braços, depois do café
veio algo mais quente, os beijos ardentes de Antônio, a pegada forte, o abraço
forte, ela não resistiu e se entregou ao homem sem passado, aquele ser de olhar
triste que tanto a alegrava agora. Ângela nunca soube do passado de Antônio,
esse nunca fez questão de falar, a foto velha que ele guardava dentro da bíblia
era de uma mulher, uma que ele amou, amou tanto que a matou em um momento de
fúria, esse homem com um passado tão cheio de culpa hoje é apenas uma incógnita,
uma pergunta sem respostas.
Na igreja
hinos de louvor, Ângela canta e agradece aos céus pela sua vida, pela sua
felicidade, Antônio olha fixamente para o teto da igreja, algo bonito, algo
transcendente toma conta dele, ele consegue ver algo além, vê dentro de si a
imagem de um ser mágico, de um Deus, do mesmo deus judaico da bíblia, o mesmo
que ele admirava tanto pela sua justiça, por matar por uma causa, Antônia já
havia matado muito, na maioria das vezes por dinheiro, algumas por raiva, mesmo
o seu grande amor não foi poupada. Ângela aperta firme a mão dele, saindo da
igreja eles passam em frente a um cemitério, Antônio fala para ela bem baixinho
que naquele lugar havia uma paz, um conforto, ele se sentia bem em cemitérios.
Naquela mesma noite eles transaram e adormecerem como faziam rotineiramente no
início do relacionamento.
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