terça-feira, 7 de agosto de 2012

O SOL E O CÃO.


Escovar os dentes é um ato tão mecânico, tão repetitivo, não tem nenhum charme, a beleza da manhã está tão cinza, olhar e não ver sentidos esculpidos em fantasmas religiosos, em construções filosóficas, o amor não é o bastante, bastar é muito para essa vida. A música toca no aparelho velho e empoeirado, a pasta dental deixa um gosto estranho na boca, a poeira do móvel fica mais visível ainda com a entrada da luz do sol pela janela.
A camisa branca, sapatos brilhando, chaves do carro popular e com parcelas atrasadas, uma mordida no pão com requeijão, um gole de café frio do dia anterior, sai apreçado, na rua tudo parece repetir o cronograma fatídico de todas as manhãs, a rotina parece ter sido escrita nas estrelas, ele vai para o serviço, esse lugar macabro, necessário e que ele sente falta nos domingos solitários.
A volta, o dia começa a cair no abismo, o sol com seu tom alaranjado mergulha calmamente no horizonte, um cochilo, um animal entra rápido em sua frente, ele escuta algo passar por baixo dos pneus, para. Um cachorro ferido, ninguém a vista, ninguém para reclamar do acidente, ele pega o cão.
A dor, um paixão do passado, uma utopia não realizada, um dente infeccionado, uma guerra com o presente, uma dor, mas a dor que não o deixava dormir era a tal da pena, a dor do cão, o cachorro “chorava” de dor, a noite ficou enorme, ele acaba levando o animal a um veterinário, pronto, está salvo e a dor diminui, ele não gosto de animais, na verdade Flávio não gosta de nada que lhe dê pena, raiva, amor, ele se afasta dos vivos e se aproxima de mortos congelados em livros, o animal fica em sua casa, uma presença incômoda, ele limpa a poeira, a música, o gosto estranho da pasta dental, uma lembrança da infância, uma separação meses atrás, uma corrida sem chegada, sua vida naquela manhã passa como um furacão pelos seus olhos.
Camisa branca, sapatos brilhando, café quente do mesmo dia, um sorriso amarelo no rosto, novos projetos e um cachorro deitado na sala, ele sai para mais um dia de rotina, a vida continua caótica, seu serviço continua o mesmo, mas sua vida está diferente, apenas um detalhe, a vida é mesmo uma colcha de retalhos cheia de detalhes, o sol brilha e entra pela janela, a desgraça rima com a graça, o divino não é algo transcendental, é algo animal, aquele ser ali deitado no canto, Flávio se lembra de sua ex-esposa, de seu filho morando do outro lado do país, ele se lembra de amigos que perdeu, o cão come lentamente e olha para Flávio, Flávio lentamente olha para dentro de sua vida, ele deve limpar a poeira dentro de si também.
Amanhã chega sem pedir licença, mais um dia, mais um respirar, o sol continua em seu lugar, o mundo não muda facilmente, o gosto da pasta dental também é o mesmo, o gosto ao sair pela porta da frente mudou, o cão late com sua saída, o medo de continuar nesse mundo é abandonado, ele sai com sua camisa branca, seu sapato brilhando e com novos projetos no olhar, viver é mesmo uma ousadia.

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