domingo, 26 de agosto de 2012

UM CARRO NA NOITE.


A noite cobria o céu, no celular mensagens chegavam, Carlos olhava para elas como se adorasse um deus, seus olhos brilhavam, no rádio tocava uma música antiga, ele no banco de trás apenas se deliciava com a nostalgia, ela trazia um passado cheio de risadas, cheio de paz, mas o presente teimava ansiosamente em abalar as estruturas, os cabelos ao vento, o sorriso daquela morena, tudo fazia com que Carlos sorrisse por dentro.
Acelerava, o asfalto parecia um tapete, nele o carro andava cada vez mais rápido, Diogo dirigia como se estivesse indo a um casamento, conversas soltas, ele olhava para o banco ao lado e conversava com Leandro, conversava sobre coisas fúteis, banalidades, sua gargalhada vibrava o volante, o carro dançava na noite, eles tinha pressa, Carlos tinha o coração cheio de angustia, ele iria terminar com sua mulher e finalmente iria cair nos braços de Andreia, sua amante, sua amada, sua deusa nas horas vagas.
Carlos cita um filósofo, os seus colegas riem e perguntam quem é esse autor, Carlos diz ser Sartre, ele fala do SER E O NADA, filosofa sobre a consciência, como o mundo que conhecemos não é o mundo “em si”, mas sim consciência de um mundo que dialogo com nosso ser. Enquanto a música muda, Diogo pensa como é chato esse tal de Carlos, Leandro mastiga o chiclete já amargo em sua boca, ele não estava prestando atenção na fala sobre o filósofo, para ele havia coisas mais importantes naquela noite para serem feitas.
Uma curva, uma casa parece brotar no meio do mato, o carro para no acostamento, os homens dessem sem pressa, Carlos com seus amores e culpas, Diogo com sua cara de cafajeste e Leandro com sua misteriosa ideia na cabeça. Eles caminham, Carlos vai à frente, eles tinham combinado algo, era uma investigação, os três agentes da policia civil prontos para mais uma investigação, desvendamento. Um tiro, um rasgar no meio da noite, o barulho percorre a mata, Carlos cai como um pacote frágil, o sangue sai pelo seu corpo como se fosse uma peneira, o verde da vegetação chapiscado de vermelho brilhava a luz da lua.
Diogo e Leandro voltam no carro pela noite, no som do automóvel toca a música preferida de Carlos, a mesma música que ele ouvia quando chorava angustiado pelas madrugas, quando se martirizava por trair sua esposa. Diogo e Leandro mastigam agora um chiclete doce, estão aliviados, pois o policial que iria dedurar o esquema no qual os dois estavam envolvidos já não é mais problema.
A noite encobre um corpo na mata, grilos cantam, o sereno desce suave sobre o corpo frio do policial, Carlos não precisa mais se separar de sua esposa. Longe dali o carro corre pela estrada, ao som de Nilson e com gosto de chiclete Diogo e Leandro sentem uma certa dor por terem matado Carlos, a noite encobria todos os crimes, todas as almas, a noite encobria a angustia, o amor, a música suavizava a viagem de volta, o carro corria como se estivesse correndo de um funeral

sábado, 18 de agosto de 2012

SEM PIEDADE.


Os óculos no rosto, o itinerário mostrava que era aquele ônibus que ele deveria pegar, entra no veículo com seu rosto misterioso, senta fleumaticamente na cadeira, olha pela janela e vê lojas em movimento, pessoas ficando para trás, vê um caos urbano explodindo, tudo saindo absurdamente do nada e penetrando em sua alma pelos olhos, olhar o mundo e não ter respostas é uma tragédia que nos acompanha. Ele desce no ponto mais próximo de sua residência, a mulher de vestido estampado desce também, ela sempre desce naquele local, ela mora na mesma rua que Antônio, eles não se falam, não trocam olhares, ele é silencioso demais para isso.
Uma fotografia guardada dentro da bíblia, Antônio a olha com lágrimas quentes a rolarem pelo rosto, nada de breguice, nada de sentimentalismo barato, o homem que olha a fotografia é um touro indomável que matava mulheres, crianças, qualquer ser que respirasse, matava por dinheiro, por raiva ou vaidade. Antônio lê o êxodo, seu livro preferido do velho testamento, aquele Deus Jeová que mata todos os seres que não estão na arca é um exemplo para ele, um espelho de força, Antônio não matava mais de dez anos, havia aposentado, se arrependia por algumas mortes, outras ele não se importava, umas cinco ele festejava, assim era aquele homem que lia a bíblia de forma tão calma.
Mais uma vez ele desce no ponto próximo a sua residência, mais uma vez a mulher de vestido estampado desce com ele, ela se pergunta por que esse homem que mora perto dela não fala com ninguém, ele é tão misterioso, tão excêntrico, sua calma ao andar o faz também tão frio, ela o olha e vê um homem atraente, um homem com a beleza madura dos cinquenta. Andando ao seu lado ela tropeça, cai e machuca o joelho, ele a ajuda a levantar, sem graça agradece o homem de óculos e olhar profundo, ela se emociona com a tristeza do olhar, acaba o convidando para tomar um café em sua casa.
Enquanto Ângela servia o café a Antônio ela pensava como seria a vida desse homem, de poucas palavras, solitário e com uma melancolia perdida no canto do olho, ele bebia o café sem cerimônia, conversaram pouco, ela perguntou sobre sua vida, quase nada ele respondeu.
Com a boca fedendo a cachaça ele chega até o local descrito em uma folha de papel suja, acende um cigarro que brilha sua chama no escuro, a fumaça que sai das narinas se misturam com a escuridão noturna, um certo ânimo apela ao coração de Antônio, mas ele se mantem calmo. Seu revolver se ajusta a sua mão como uma luva, ele entra na casa como se dançasse balé, havia até certa elegância no falar tranquilo, pergunta pelo Carlos, ele estava no quarto, Antônio entra no recinto e com precisão acerta três tiros na cabeça do alvo, o sangue escorria pelo lençol branco, a mulher e as duas criança olham assustadas para aquilo, gritos, choro, Antônio sem piedade mata as crianças e a mulher, ele não treme, seu coração não bate mais forte, ele sai da casa com o cigarro acesso, a fumaça sai bailando pelo ar, aquilo foi a mais de dez anos, agora ele toma café e conversa com aquele mulher de vestido estampado, ela o olha com desejo.
Ele olha para o lado, o corpo nu de Ângela adormecido em seus braços, depois do café veio algo mais quente, os beijos ardentes de Antônio, a pegada forte, o abraço forte, ela não resistiu e se entregou ao homem sem passado, aquele ser de olhar triste que tanto a alegrava agora. Ângela nunca soube do passado de Antônio, esse nunca fez questão de falar, a foto velha que ele guardava dentro da bíblia era de uma mulher, uma que ele amou, amou tanto que a matou em um momento de fúria, esse homem com um passado tão cheio de culpa hoje é apenas uma incógnita, uma pergunta sem respostas.
Na igreja hinos de louvor, Ângela canta e agradece aos céus pela sua vida, pela sua felicidade, Antônio olha fixamente para o teto da igreja, algo bonito, algo transcendente toma conta dele, ele consegue ver algo além, vê dentro de si a imagem de um ser mágico, de um Deus, do mesmo deus judaico da bíblia, o mesmo que ele admirava tanto pela sua justiça, por matar por uma causa, Antônia já havia matado muito, na maioria das vezes por dinheiro, algumas por raiva, mesmo o seu grande amor não foi poupada. Ângela aperta firme a mão dele, saindo da igreja eles passam em frente a um cemitério, Antônio fala para ela bem baixinho que naquele lugar havia uma paz, um conforto, ele se sentia bem em cemitérios. Naquela mesma noite eles transaram e adormecerem como faziam rotineiramente no início do relacionamento.



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

TÁXI AMARELO


Escrever, colocar no lugar antes branco um colorido de uma vida, manchar com palavras a vida, dá um tom de vermelho as paixões, ao sangue derramado na esquina, pintar de cinza as emoções reprimidas, ao olhar de um dia de chuva, ao psicodélico choro melancólico ao som de pink Floyd, escrever é gozar, é chorar, escrever é desabafar coisas nunca sentidas, é sentir algo como se não fosse real, é ver a realidade fantasiosamente, é brotar da terra dos sonhos cuspindo pesadelos, escrever é mágico, é o mundano sobrenatural, é a metafísica do desencanto, é a corneta do apocalipse antes do desencontro.
Escrever é traçar com linhas tortas vidas amargas, é deslizar letras que buscam o doce das palavras, descrever o mundo sem juízo, o prejuízo de vidas felizes, todo escrever é dor, amor, rancor, perdão, todo escrever é lembrar, é esquecer, escrever é repetir o inédito, é o que não muda abaixo do sol, mesmo quando as trevas mudam nossa escrita.
Escrever é narrar aquilo que passa pela minha mente quando vejo a cor amarela, o amarelo me lembra o táxi, foi no táxi que encontrei aquele homem, sua fala irônica, seu modo debochado de encarar as desgraças da vida, foi ali que o vi pela primeira vez, desde então minha vida cruza com a dele, entre encontros e desencontros, entre sinais fechados, aberturas apocalípticas, eclipses da razão, a desrazão da ótica psicodélica, se falo sem nexo deve ser por que não havia lógica no mundo dele.
Um som, uma nostalgia, me lembrei de dias de chuva, de meu ex namorado, ciúmes, pouco diálogo, me lembrei de minha mãe, aquela mulher com gosto de socialismo misturada com judaísmo e vinho. Meus cabelos loiros soltos soltavam o peso de minha memória, agora estava com gosto de uva na boca, saudade nos olhos e uma imagem, a imagem do homem que conheci em um táxi, o amarelo, a música, o comunismo de minha mãe, o realismo fantástico de minhas leituras, gostaria de revê-lo, como era constrangedor saber que ele era irresistível, seus beijos saborosos, seus abraços apertados, sua visão exagerada, suas leituras de Machado, sua libido desenfreada, como era gostoso mergulhar em seus braços, gozar olhando para seus olhos castanhos ou de costas com ele puxando meus cabelos loiros, sedosos e todos entregues a suas mãos.
Escrever é passar pelas torturas da mente, por ditaduras da liberdade sem volta, cair no abismo sem gritar é ato de coragem, o escuro do abismo é descrito com escritas corajosas, minha angustia, saber que a morte é o limite, não ter resposta para a vida, não ter alternativa ao capitalismo, tudo isso é descrito por minha mente, escrito por minhas mãos, mas o amor reprimido, o desejo escondido, minhas lembranças daquele homem alegre e cheio de citações de Nietzsche não são bem escritas, saboreadas pela leitura.
Tenho medo da vida, ela me engole e cospe fora, foi em um dia de chuva que entrei no táxi, o motorista era um homem moreno, maduro, seus quarenta anos eram apagados pelo seu sorriso de garoto, sua fala macia e cheia de malícia me encantaram desde o início, sua ironia quando falava de política, sua verbalização quando debochava da religião, bem, minha espiritualidade era abalada pela sua beleza ateia. Era um dia de chuva quando o táxi amarelo bateu, o sangue escorrendo pela rua, chorei como se o mundo houvesse chagado ao fim, hoje escrevo desnorteadamente sobre um homem que não vejo a mais de vinte anos, não o amo mais, não tenho desejo por ele, ele não existe mais, seu corpo já foi banqueteado por vermes gulosos, meu amor foi enterrado em um passado maravilhoso, como é bom escrever, enquanto escrevo dou vida aquele homem fã de Machado, fã de risadas, aquele homem que tantas vezes  me fez gozar a vida e excitou meu corpo hoje é apenas uma escrita em minha memória.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O SOL E O CÃO.


Escovar os dentes é um ato tão mecânico, tão repetitivo, não tem nenhum charme, a beleza da manhã está tão cinza, olhar e não ver sentidos esculpidos em fantasmas religiosos, em construções filosóficas, o amor não é o bastante, bastar é muito para essa vida. A música toca no aparelho velho e empoeirado, a pasta dental deixa um gosto estranho na boca, a poeira do móvel fica mais visível ainda com a entrada da luz do sol pela janela.
A camisa branca, sapatos brilhando, chaves do carro popular e com parcelas atrasadas, uma mordida no pão com requeijão, um gole de café frio do dia anterior, sai apreçado, na rua tudo parece repetir o cronograma fatídico de todas as manhãs, a rotina parece ter sido escrita nas estrelas, ele vai para o serviço, esse lugar macabro, necessário e que ele sente falta nos domingos solitários.
A volta, o dia começa a cair no abismo, o sol com seu tom alaranjado mergulha calmamente no horizonte, um cochilo, um animal entra rápido em sua frente, ele escuta algo passar por baixo dos pneus, para. Um cachorro ferido, ninguém a vista, ninguém para reclamar do acidente, ele pega o cão.
A dor, um paixão do passado, uma utopia não realizada, um dente infeccionado, uma guerra com o presente, uma dor, mas a dor que não o deixava dormir era a tal da pena, a dor do cão, o cachorro “chorava” de dor, a noite ficou enorme, ele acaba levando o animal a um veterinário, pronto, está salvo e a dor diminui, ele não gosto de animais, na verdade Flávio não gosta de nada que lhe dê pena, raiva, amor, ele se afasta dos vivos e se aproxima de mortos congelados em livros, o animal fica em sua casa, uma presença incômoda, ele limpa a poeira, a música, o gosto estranho da pasta dental, uma lembrança da infância, uma separação meses atrás, uma corrida sem chegada, sua vida naquela manhã passa como um furacão pelos seus olhos.
Camisa branca, sapatos brilhando, café quente do mesmo dia, um sorriso amarelo no rosto, novos projetos e um cachorro deitado na sala, ele sai para mais um dia de rotina, a vida continua caótica, seu serviço continua o mesmo, mas sua vida está diferente, apenas um detalhe, a vida é mesmo uma colcha de retalhos cheia de detalhes, o sol brilha e entra pela janela, a desgraça rima com a graça, o divino não é algo transcendental, é algo animal, aquele ser ali deitado no canto, Flávio se lembra de sua ex-esposa, de seu filho morando do outro lado do país, ele se lembra de amigos que perdeu, o cão come lentamente e olha para Flávio, Flávio lentamente olha para dentro de sua vida, ele deve limpar a poeira dentro de si também.
Amanhã chega sem pedir licença, mais um dia, mais um respirar, o sol continua em seu lugar, o mundo não muda facilmente, o gosto da pasta dental também é o mesmo, o gosto ao sair pela porta da frente mudou, o cão late com sua saída, o medo de continuar nesse mundo é abandonado, ele sai com sua camisa branca, seu sapato brilhando e com novos projetos no olhar, viver é mesmo uma ousadia.