“O caos reina”. Essa frase parece ser
tirada da fala da raposa no filme ‘Anticristo’, de Lars Von Trier, e
esse é o sentimento coletivo imerso em notícias sanguinolentas,
chocantes e sensacionalistas disseminadas pelas mídias escritas,
televisionadas, no ciberespaço da internet, e mesmo no “boca a boca”,
nos bares, escolas, locais de trabalho e no lar. A violência é assunto
preponderante nas rodas de conversas, noticiários de jornais, programas
eleitorais; é a coqueluche do momento. Mas o que é violência, e como ela
se dá na totalidade social?
A palavra violência traz a ideia da
profanação, no sentido religioso, e de transgressão, no sentido
jurídico. A violência pressupõe relação, algo é atingido, violado por
outro, porém isso não pode ser dito da natureza, pois é uma relação
social, e não natural, ela se dá entre pessoas, onde uma, ou várias
pessoas, impõem algo a outra pessoa, ou pessoas, contra sua vontade.
Como bem colocou o sociólogo Nildo Viana em seu artigo ‘Violência,
Conflito e Controle’, “podemos então definir a violência como relação
social caracterizada pela imposição realizada por um indivíduo ou grupo
social a outro indivíduo ou grupo social contra sua vontade ”.
Conceituar não basta para desenrolar
esse novelo que obnubila e obstaculiza um entendimento mais clarividente
do problema. Temos que avançar na discussão. Há um debate sobre o
caráter natural e social da violência, há aqueles que corroboram com a
ideia da violência enquanto algo natural, instintual, e aqueles que a
vêem como social, cultural e histórica.
No primeiro grupo temos autores como
Freud, que naturaliza a violência: para o mesmo há o instinto de morte,
Tanatos, que luta com o instinto de Eros, o erótico. Nessa perspectiva a
agressividade é instintual, própria da natureza humana. Outro
intelectual que dialoga com essa ideia natural de violência é o inglês
Thomas Hobbes, autor do clássico da filosofia política ‘O Leviatã’.
Hobbes relata em sua obra que o ser humano é naturalmente violento e
egoísta e com isso justifica a necessidade de um Estado forte e
autoritário para barrar essa agressividade nata dos humanos, pois “o
homem é lobo do homem”. Sem esse Estado forte e absolutista poderíamos
voltar ao estado de natureza de guerra de todos contra todos.
Outra perspectiva nesse caleidoscópio
textual é o da violência originada do social. Aqui ela é vista como fato
social. Nesse diapasão tem destaque Durkheim, sociólogo que defende que
o todo é maior que a soma das partes e que dá total primazia da
estrutura social sobre os indivíduos. A abordagem dele mostra a
solidariedade como algo central, seja a mecânica, onde a individualidade
é pequena (exemplo das tribos indígenas), ou da sociedade industrial
moderna, chamada de orgânica, com uma maior individualidade e divisão
social do trabalho. Para o sociólogo francês, o crime é uma ofensa aos
sentimentos fortes da coletividade, quando atinge níveis intoleráveis há
anomia, fraqueza das instituições e moral, nesse caso ouve falha na
regulação, no controle social. A violência aqui é vista como um estado
de anomia.
A teoria materialista histórica e o
método dialético de Marx partem das relações sociais de produção, das
relações concretas, para analisar a sociedade. Nela, o conflito de
classes faz surgir o controle social, dentre ele o Estado, que
regulamentará as relações sociais, com seus conflitos e violência.
Porém, o próprio Estado, detentor do monopólio da violência, nas
palavras de Max Weber, será gerador de violência, como no caso das
desapropriações de ocupações urbanas e rurais, criminalização de
movimentos sociais e etc.
Com a teoria marxista constatamos também
que a separação do proletariado dos meios de produção, a precarização
das relações sociais com o aumento do exército de reserva, o
lupemproletariado, o aumento das desigualdades sociais levam ao aumento
da violência, da procura pelo ganho fácil e pela agressividade nessa
busca. Não podemos aqui corroborar com o determinismo de que a pobreza é
causa do crime e violência, mas sim a desigualdade, o aumento da
distância entre ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e negros;
claro que o estado de miséria, más condições de vida condicionam também o
aumento do crime e da violência, mas não se reduz à pobreza.
A mercantilização da vida, a burocracia e
o sentimento de competição também levam ao aumento da criminalidade e
violência. Veja a competição no trânsito ligado ao estresse das grandes
cidades relacionando à violência com atropelamentos, assassinatos em
brigas de trânsito. Mesmo entre ricos é possível vermos a
mercantilização, competição e busca por status influenciando a vida
criminosa; não basta ser rico, tenho que ter mais que o outro, tenho que
ter a vida que a publicidade vende e acesso aos bens mercantilizados,
que só posso ter ganhando muito dinheiro.
Até a violência mais passional, como a
violência contra a mulher, racismo, homofobia, tem relação com a
desigualdade e luta de classes que se somam à educação machista,
racista, a problemas psicológicos, à história de vida dos indivíduos,
dentre outros fatores. Como não notar a relação entre desigualdade no
mercado de trabalho, de oportunidade como uma das determinantes da
violência contra o sexo feminino?
A violência não é natural, ela é fruto
das relações sociais, da luta de classes, da desigualdade, da dominação e
exploração. Ela é fruto, de múltiplas determinações do social, mas a
fundamental é a desigualdade.
Por fim poderíamos concluir que não
basta investir apenas em policiamento, seja ostensivo de patrulhamento,
ou o de investigação, pois esses lidam apenas com as consequências, e
não com as causas da violência e criminalidade; eles não vão ao âmago
dos problemas da violência, que tem suas raízes na desigualdade social,
na competição da sociedade capitalista, na falta de oportunidades e
educação. Além disso, a precariedade e mercantilização da vida humana,
tendo essa deixado de ter dignidade, valendo por si mesma, tendo agora
preço como qualquer outra mercadoria do mercado, como diria Kant, também
contribui para o aumento da violência e criminalidade.
Entendendo o que é a violência e suas
causas, entendemos também que o problema passa pela totalidade social, e
não apenas em sua fragmentação, seja ao investimento em educação,
policiamento ou outra medida separada, fragmentada e sem a teleologia de
mudança social.
...
Postado originalmente em: http://www.policiacivil.go.gov.br/artigos/violencia-e-totalidade-social.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário