A
televisão é uma faca de dois gumes, nela vemos programas rasos, fofocas,
novelas, filmes, telejornais, documentários, programas de auditório. A maioria
dos programas são ruins, ou, de qualidade mediana. Assim como no garimpo
podemos selecionar, pesquisar e achar pedras preciosas, umas dessas pedras é na
verdade simples e de aspecto aparentemente superficial, rudimentar, estou falando
aqui de Chaves, o programa infantil que contagiou minha geração e é, por
décadas, reprise garantida em um canal de televisão aqui no Brasil. Foi com
Chaves que ouvi falar de Dom Quixote pela primeira vez, livro que fez parte de
minha primeira formação como leitor, foi nesse programa que ouvi uma música que
iria me fazer assistir um filme emblemático da Era de Ouro do cinema
estadunidense, a música era o tema do professor Girafales e dona Florinda, ela
era uma versão da trilha sonora original do famigerado ...E o Vento Levou, obra consagrada por alguns como clássica, e
detratada por outros como um filme chato, brega e conservador. É no meio dessa
polêmica que irei falar dessa obra cinematográfica que marcou a história do
cinema e a vida de muita gente, inclusive a minha.
...E
o Vento Levou é um filme do gênero romance de 1939, ano que estourou a segunda
guerra mundial, é baseado no romance de Margaret Mitchell e estrelado por Viven
Leigh e Clark Gable. É um filme do estilo de estúdio, controlado pelo produtor
e com pouca liberdade para o diretor criar e ser autoral, tem a cara da era de
ouro de Hollywood. O filme começa já com música melosa e épica seguida de um
texto que enaltece o sul dos Estados Unidos e uma época de galanteios, cavalheiros,
damas, senhores e escravos, uma época que o vento levou. Assim podemos logo de
início dizer que o filme tem como uma de suas bases a nostalgia de uma época
rural, de modos e educação, mas também uma época de relações de trabalho
escravista e da grande propriedade exportadora de monocultura, no caso do filme
o algodão. Logo após somos apresentados à protagonista, Scarlett O’Hara, que
num primeiro momento é uma jovem mimada de uma família rica e apaixonada por Ashley
Wilkes, fazendeiro que irá se casar com sua prima. A protagonista passa por
vários eventos, dentre eles pela guerra de secessão entre o norte
industrializado e o sul rural e escravista; durante essa fase do filme Scarlett
será viúva, tinha se casada por puro capricho com um jovem que irá morrer logo
em seguida na guerra com pneumonia. A fase do filme que retrata a guerra é uma
das melhores, o colorido forte e de tom avermelhado que simboliza o fogo e a ardência
do momento nos dá belas imagens, um plano sequência da protagonista passando
por um grupo de soldados filmado por um ângulo panorâmico nos dá uma impressão
da desgraça e da morte na guerra, além disso posso destacar a cena clássica do incêndio
em Atlanta, que beleza infernal, arde nas telas!
A
guerra é um divisor de águas, nela vemos o crescimento da protagonista que
deixará de ser apenas uma menina mimada e passará a ser uma mulher forte,
interesseira, uma mulher que abandonará os ideais da dama rural sulista e
abraçará a moral capitalista burguesa do Norte. A fome mostrada na cena
emblemática de Scarlett gritando aos céus que nunca mais passará fome é uma
arma que irá destruir algumas ilusões e forjará essa mulher ousada, forte e de
caráter duvidoso, para não dizer quase uma megera.
O
protagonista masculino é Rhett Butler, industrial e especulador, ou
aventureiro, termo usado no filme para simbolizar nortistas, galanteador e
cafajeste, é apaixonado por Scarlett, mesmo sendo esnobado ele a paquera e
tenta ter algum tipo de relacionamento com a anti-heroína, e é depois da morte
do segundo marido de Scarlett que Butler finalmente consegue se casar com ela,
daí vamos para o último ato do filme que se passa durante os anos de casamento
dos protagonista e termina depois de algumas fatalidades e golpes do destino.
...E
o Vento Levou é um filme dúbio, um melodrama que influenciou as telenovelas,
traz personagens fortes e complexos em uma trama um pouco superficial e brega,
o romance entre O’hara e Butler, que atravessa anos, guerras, mortes e
fatalidades tem como plano de fundo a marcha do capitalismo liberal industrial
e as mudanças que irão desestruturar a sociedade sulista com seus cavalheiros, “nobreza
mercantilista”, e minará essa rocha que era o trabalho escravo.
Um
lindo romance, mesmo com seu ar brega, uma das melhores personagens femininas
já escrita para o cinema, uma trilha épica e que contagia, uma fotografia
bárbara que ilumina e encanta, mas um enredo conservador e racista, um hino de amor
ao sul escravista e ruralista. Mesmo sendo um filme que idolatra algo que hoje
é condenável, romantizando relações que eram violentas, colocando o negro como
um ser manso conivente com a desventura negra na América, podemos olhar com uma
visão crítica e ver aqui um documento cinematográfico de uma mentalidade
arcaica de um mundo que seria parecido com o de Casa Grande e Senzala de
Gilberto Freire.
Apesar
de tudo que foi dito acima ainda acho válido ver e rever essa obra prima que
encanta pela fotografia, personagens, as vezes chateia por algumas cenas
ridículas, novelescas e infantis, e nos incomoda pela visão retrógrada, mesmo
assim sobrevive como um clássico nos fazendo crer por algumas horas no amor
avassalador dos protagonistas que, como diz o personagem Rhett Butler, não
valem nada!
Para
finalizar poderia dizer que no fundo ...E o Vento Levou é um filme sobre a
propriedade, aqui bem simbolizada por Tara, fazenda da família O’hara, terra
que a única coisa, nas palavras do pai de Scarlett, que vale a pena viver,
lutar e morrer. É com um monólogo sobre a terra que termina o filme, um romance
que se finaliza com um hino de amor à propriedade.