Olhando aquele cachorro fico pensando como seria bom não ter
consciência do mundo, saber que existe algo fora de mim, com vida própria, com movimentos
contrários a minha vontade, como é bom não ter consciência da dor, do amor, da
ressaca e da alvorada, como seria bom não caminhar melancólico, ter alegrias ilusórias,
ou êxtases momentâneos. O cachorro branco e com a língua para fora apenas vive
sem refletir sobre isso, o que ele sente não o faz diferente, não o aflige ou
angustia, ele apenas está ali, abanando o rabo, comendo ração e esperando o
sono dominar seu ser.
Em frente a televisão fico pensando em mulheres nuas, na tela
uma reportagem sobre culinária, um programa matutino sobre futilidades, não me
prende atenção, ao meu lado um colega falando ao celular, imagens do filme Dança com Lobos povoam minha mente
indecente, o colega fala com sua amada, minha amada vontade de ir embora correr
nos campos como um lobo, uivar em campos
abertos onde índios caçam búfalos, sou aquele homem branco de bigodes grandes
encantado com a selvageria, com a civilização indígena do filme, sou na verdade
uma angustia latente que inveja a vida canina por não ter que existir
plenamente.
No espaço a solidão é tão normal, de lá vejo um azul
longínquo, sinto a presença do divino, lá a incógnita do universo se transforma
em uma contemplação do infinito, além do
que vejo existe tudo que não sinto, no espaço deve ser assim, me sinto assim
pensando como um astronauta de mármore, quebrando o gelo com meu machado imaginário,
com minha raiva presa na garganta , com meu libido sufocando minhas entranhas,
entranhado nas vísceras de meus pensamentos está essa vontade de me isolar do
planeta, aquele cachorro com a língua de fora não pensa nisso.
Uma proposta indecente, uma vírgula que separa o sujeito e
seu predicado, uma coisa anormal que normaliza toda a caótica e desenfreada
ação de respirar, sonhar, comer a maçã do pecado, poetizo sobre a noite e o
luar, disserto sobre a política e o olhar, jogo toda a minha erudição fora como
pérolas aos porcos quando falo as paredes, assisto filmes para poder passar o
tempo, o tempo passa rapidamente, parece uma contagem regressiva para a morte,
morrer não tem data marcada, se eu fosse o cachorro branco não me preocuparia
com isso, isso é apenas algo a não se preocupar, a falta de preocupação é
preocupante, eu reconheço.
A música de Bach toca no fundo da sala, no fundo da alma toca
o sino de atormentar, corre um rio calmo, a árvore da vida repousa no meio do
jardim do Éden, o paraíso fica dentro de alguma semente que floresce sempre que
gozamos a vida e desaparece ao lado do inferno que queima nosso corpo.
Na tv o programa continua a falar de futilidades, ao meu lado
o colega ainda fala de amor, como é engraçado, no chão do lado esquerdo da
cadeira adormecido está o cachorro branco, continua minhas percepções sem razão,
minha existência sem sentido, meu olhar ao infinito, meu mundo sempre caindo e
se reconstruindo com o pensar, o cachorro está tão bonito, adormecido, eu estou
escolhendo, liberdade é uma angustia sem lamento, na tv tudo igual, na vida a
repetição beija o inédito, a morte nos espera na esquina, se eu fosse o
cachorro nem estaria escrevendo isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário