Seus olhos secos denunciavam sua falta de emoção naquele
momento, Flávio olhava para o caixão sem se emocionar, ele não ligava para a morte,
as flores tinham a beleza da vida e não o tom fúnebre que ali desempenhavam,
Flávio sentia prazer em ver as mulheres fofocando, comendo pão de queijo, crianças
andando pela casa, o morto ali enfeitando a sala era apenas uma desculpa para
uma reunião social. O morto que ilustrava esse velório monótono era um tio de
Flávio, um tio querido, mas que não contava mais piadas, falava palavrão ou
beijava as empregadas, nem tio era mais, não era mais um ser, era apenas uma
lembrança materializada naquele corpo sem vida.
Em sua casa o cachorro o espera, um gole de wisk para animar
a tarde, uma música mais vibrante para esquecer o tom negro do enterro, o
cachorro deitado no tapete o olha como se contemplasse um extraterrestre,
Flávio bebe vagarosamente aquele líquido alcoólico sem pestanejar, ao fim de
mais um pensamento vem a lembrança da terra caindo sobre o caixão, uma nota de
roda pé, um texto do Kafka, lembranças do esperma viscoso descendo em suas
mãos, uma bomba atômica, o caos de luzes de 2001, a terra caindo, o mundo
vibrando, pessoas tristes, pessoas chorando, ele bebia e se lembrava com
alegria do fim daquele dia.
A noite chega com sua manta fria, ele visita sua esposa,
assim como o filósofo de o ser e o nada ele
se casou, mas mora separado, um beijo de boa noite, nessa noite ela mantém
aquele distanciamento, reclama de seu serviço, uma certa indiferença seguida de
alguma brincadeira onde ela o coloca como um ser amoroso e ela como uma pedra
de gelo cobiçada. A indiferença lançada em seu discurso não é mais profunda que
a de Flávio com a morte, essa coisa que dá brilho a vida, que dá um nó na garganta. Eles não
transam naquela noite, apenas conversam e se despedem com um beijo mais
profundo, em sua casa o cachorro o espera.
A música é uma velha conhecida, century foi uma banda de sua infância, brega como cartas de amor, a
morena com corpo escultural sobe ao palco, ele a olha com seu olhar guloso, devora até a alma da moça, a coca-cola
gelada desliza pela sua garganta dançando o tango caliente, esfriando a paixão
efervescente, enquanto a morena tira a roupa ele pensa naquela mulher em sua
cama, no fim ele se levanta e vai embora sem devorar o fruto proibido.
Enquanto caminha pela noite seu cérebro mistura aqueles seios
fartos com a fartura de lágrimas do velório de seu tio, aquelas pessoas tristes
o constrangia, ele se excitava com as lembranças da dançarina, ele a imaginava
chupando seu pênis, de repente um barulho, a terra caindo no caixão, uma batida,
sangue pelo chão, ele olha, em sua frente um acidente, uma mulher e um bebê, os dois mortos dentro do veículo,
ele olha com indiferença, mas algo o perturba, aquele bebê morto, tão jovem,
não pode mais respirar a fumaça de poluição e nem beber coca-cola gelada.
Mais uma noite de visita a sua esposa, hoje ela o recebe com
um jeito mais provocante, chega a demonstrar um certo carinho, eles discutem
sobre socialismo, liberdade e novela das oito, no fim se deitam, seus corpo
flamejantes de desejo esquentam suas mais maliciosas fantasias. O dia chega, o
sol penetra na residência de Verônica.Flávio se despede de sua esposa, ela está
novamente com seu ar de arrogância e sua fala fingindo desinteresse, mais um
beijo e ele se vai.
A terra cobria o caixão, por fim Flávio deixa o cemitério,
seu tio agora é apenas um dado na memória, antes de sair ele fita os jazigos,
ele pensa que um dia irá morar ali, mas ele não existirá, ele morrerá, apenas
seus restos orgânicos estarão ali, ele, assim como uma barata, uma baleia ou
formiga deixará de existir, lembra que sua esposa se emociona em velórios e que ela acredita em outras vidas. Enquanto
saia do cemitério pensava na vida, no fato de não ter filhos, na existência
finita de seu corpo, nas ideias políticas sociais democratas, sua boca seca já
pensava na bebida que o esperava, já podia ver seu cachorro pulando de alegria.
O bebê morto, a mulher sangrando, o esperma escorrendo, a terra sobre o caixão,
sua esposa, o gélido olhar, o másculo sentir, a bomba atômica do explorar, o
capitalismo a ruir, tudo misturado com wisk e sendo admirado pelo seu cachorro,
mais um gole ele iria dormir sentindo a vida em seu corpo, uma lágrima rola
pelo seu rosto, é fruto da música tema do filme.