Ela caminha suavemente pelo calor da tarde, seus cabelos
soltos, negros, volumosos como o som da vida, sedosos como um sonho, ela para
em frente a biblioteca, ele está lá, pensa ela, ele está lendo seu livro
preferido, está lendo Dom Quixote, está viajando entre princesas, , ilhas,
Panças, entre moinhos de ventos, ele está pensando “que razão demais é loucura,
mas loucura maior é ver o mundo como ele e não como deveria ser”, ele adora
citar esse trechos escritos por Cervantes, escritos com tintas invisíveis.
Ela caminha, o sol esquenta corações, queima a pele, ela
sonha com futuros intergalácticos, com casamentos no espaço, com vidas no
infinito da galáxia, ela quer algo acima do mundano, no fundo ela também
acredita em algo cósmico, espiritual, no fundo esse mundo é apenas uma nave
passageira, mas a vida não passa disso mesmo.
Fabio olha para o pé de manga em frente a sua casa, ele se
lembra das florestas da Ásia, da guerra, do sangue, dos gritos de crianças correndo
nuas pelas estradas, de homens fortes com desejos infantis, de munições voando
pelos ares, de vidas sendo ceifadas, ele se lembra de tudo que o incomoda,
incomoda explodindo em sua memória.
Letícia abre o livro, Sancho Pança é tão humilde e sonhador,
ele se ilude com as ilusões de Quixote, ela se apaixonou pelo livro assim como
se apaixonou pelo nerd Rafael, pelo egoísta e medíocre Rafael, o autodidata que
só pensa nele e em ser superior intelectualmente, mas mesmo assim ele tem um ar
que contagia, por baixa de sua epiderme medíocre há uma persona com um jeito
humano, assim Letícia o via, assim ela o sentia.
Como vermes passeamos pelas carnes do planeta, mergulhamos no
pus do humano, nas fezes da escrotidão, no barulho do tambor que soa na guerra,
Fábio passeia com suas lembranças pelas desgraças do mundo até chegar naquele
rosto sujo, naquele olhar contemplativo, no jeito simples de Letícia, a mulher
que ele conheceu sendo estuprada por dois soldados, mulher que ele salvou das
garras de seus inimigos.
Uma música,um alento, Rafael a beija naquela tarde chuvosa,
ela havia chorado, a tristeza liquefaz os sentimentos e eles deslizam pela
face, agora ela chorava de prazer, nos braços do inescrupulosos estudante que a
queria apenas para o seu prazer, sem amor, sem ternura, apenas orgasmos, apenas
sem perdão.
Caminhando pela selva os horrores eram encobertos pela
vontade de voltar, a casa, o brinquedo, o beijo de boa vinda, o lustre, o
carro, a palestra sobre fenomenologia, o jogo, tv, um roído, o caos, lembranças,
saudade, corre, ouro, lágrimas, um vendaval, tiros, ele volta com sua arma, com
seus amigos, jogo, futebol, tiros, sangue, sexo, tudo volta enquanto ele se
lembra agora de Letícia, ele volta a selva, memória, indestrutível,
esquecimentos, comendo ela de quatro, Nietzsche, o nobre, explosões, fim da
linda, agora ele caminha, biblioteca, autodidata.
Letícia chaga ao Brasil com seu amado, Fábio a ama como a um
deus, como uma deusa, como algo acima do carnal, seus momentos floridos, suas
angustias devidas, seu cruzeiro por terras tupis, eles estão longe daquilo que
tanto sangrou, que tanto machucou, mas foi aqui que ela o abandonou, que o
trocou pelo nerd sem coração, por um sonhador sem escrúpulos.
Como uma psicodelia, como um sopro de gigante o tempo nos
devora, como uma puta nos excita e vai embora, enrugado pelos anos Fábio
caminha pelas estradas sem destinos, Letícia deve estar em algum lugar, ele não
sabe, apenas entra, olha, um livro, Dom Quixote, ele sabe que era o livro preferido
de Rafael, do novo governador do estado, “razão demais é loucura”, loucura
maior é escrever sobre isso, sem medo ou ternura, um tiro, um roído, corpos
sangrando, belas bocas mudas, a guerra interna feri mais que o Vietnã.
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