sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Civilização e Barbárie Virtual

 

O progresso tecnológico não foi acompanhando de uma progressiva e dinâmica melhora ética; não estamos caminhando de uma barbárie para uma civilização. Pelo menos não dentro de um diapasão evolucionista.

A técnica fria e calculista possibilitou aviões, exames e medicamentos médicos, viagens espaciais, curas de doenças; a tecnologia foi responsável pelo aperfeiçoamento industrial, transporte e comunicações. A mesma esteira que trouxe o primor técnico, trouxe também guerras com mortes em massa, equipamentos bélicos mais mortíferos.

Olhando pelo caleidoscópio do social percebemos que as relações humanas não foram beneficiadas na mesma intensidade; a sociedade do capital gera cada vez mais miséria, populações morrem em maior número devido a violência criminal, estatal, guerras, fomes etc. Logo, a civilização que trouxe trens de auto velocidade, vacinas, cinema; trouxe também tanques de guerra, fome, alienação e coisificação do ser humano.

O ser coisificado se torna um objeto, deixa de ter dignidade, como diria Kant, e passa a ter preço, onde qualquer outra coisa pode ser colocada em seu lugar. A sociedade tecnocrata, capitalista se tornou um criadouro de coisas, humanos mecanizados e bestializados.

A internet, essa terra virtual que possibilitou transações bancárias rápidas, comunicações em tempo real, acesso a textos, músicas, conhecimentos; que quebrou a barreira da distância, do som e da sapiência; ela carregou em seu ventre a falta de diálogo, ataques, fake news e monstruosidades.

A internet se torou o palco de um espetáculo real e alicerçado nas mudanças dos últimos anos; mudanças essas relacionadas a crises econômicas com desemprego, recessão, crises políticas e recrudescimento de extremismos como: xenofobia, racismo, ultranacionalismo, flerte com a ideologia fascista e outras mazelas.

Nas redes sociais vemos o desdobrar do rancor, da falta de perspectiva de pessoas que temem o outro, o diferente, o estrangeiro, coloração partidária e/ou ideológica contrárias as suas. Nas redes temos o ataque ao outro, que de interlocutor passou a ser o inimigo, o mal, o mensageiro do apocalipse.

No lugar do diálogo, da ação, da compreensão temos a negação, o silenciar e o apagar da outra voz.

Há muito de ressentimento, de remoer sentimentos mesquinhos de inveja, de contrariedade; se envenena ao não conseguir digerir o que incomoda; fracos, como diria Nietzsche. Querem castigar o diferente, o nobre, o altivo; ou mesmo, o que incomoda e contraria as massas, o rebanho sem voz própria que segue pastores espirituais, líderes políticos carismáticos, ou as falsas notícias das redes sociais.

A civilização que tem a ideia de polidez, bons modos, ciência, “iluminismo” racionalista; é também desumanizador, genocida, racista e mecanicista.

No âmago da matrix prolifera notícias falsas, ataques a pessoas com calúnias, injúrias, como as raciais. Desejos subterrâneos e sub-reptícios são aflorados, ânsia em eliminar quem pensa diferente, quem tem outra fé, raça, sexualidade, ideologia; quem nega a verdade única de quem se limita a uma verdade cartesiana, fechada e excludente.

O capitalismo passa por uma fase “toyotista” de acumulação integral com um estado neoliberal, com neoimperialismo- globalização, e crises de acumulação de capital cada vez mais frequentes.

Esse regime do modo de produção tem como característica aumento das desigualdades sociais, desemprego, estado mínimo para o social e máximo para a economia e repressão dos excluídos. Nos últimos anos percebemos que ele foi criticado, e em seu lugar tentam colocar um estado neoliberal na economia, e mais autoritário e facínora ainda na política; uma mistura de fascismo com liberalismo.   

Desde 2008 sofremos a ressaca de uma crise, e, antes mesmo dela, já víamos a sombra do monstro crescer sob as ruínas de outras crises.  Nesse caldeirão borbulhante os ressentimentos, os nacionalismos e autoritarismo crescem e explodem em ataques virtuais que tomam corpo fora das redes sociais também.

A violência toma uma nova roupagem quando não somente fere, maltrata, machuca e mata; mas desumaniza e torna o outro apenas um animal para ser sacrificado ou coisa para ser trocada, destruída ou sucateada, e esquecida. Essa nova roupagem podemos chamar de barbárie, ela nasce dentro do intestino civilizacional, obscuridade cuspida pelo iluminismo, popularizada e disseminada na internet; nesse deserto surreal, tão absurdo quanto a vida fora da rede social ou a literatura kafkiana.  

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Publicado originalmente no jornal Diário da Manhã em 20 de Agosto de 2020.

Link do jornal:

http://impresso.dm.com.br/edicao/20200820/pagina/15?fbclid=IwAR3qohbD_U70xTPpDvLr0QeM40rLQ6lbLTgHC6HT2gLtzzloA5VdAYPwInk

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