O
progresso tecnológico não foi acompanhando de uma progressiva e dinâmica
melhora ética; não estamos caminhando de uma barbárie para uma civilização.
Pelo menos não dentro de um diapasão evolucionista.
A
técnica fria e calculista possibilitou aviões, exames e medicamentos médicos,
viagens espaciais, curas de doenças; a tecnologia foi responsável pelo
aperfeiçoamento industrial, transporte e comunicações. A mesma esteira que
trouxe o primor técnico, trouxe também guerras com mortes em massa,
equipamentos bélicos mais mortíferos.
Olhando
pelo caleidoscópio do social percebemos que as relações humanas não foram
beneficiadas na mesma intensidade; a sociedade do capital gera cada vez
mais miséria, populações morrem em maior número devido a violência criminal, estatal,
guerras, fomes etc. Logo, a civilização que trouxe trens de auto velocidade,
vacinas, cinema; trouxe também tanques de guerra, fome, alienação e
coisificação do ser humano.
O
ser coisificado se torna um objeto, deixa de ter dignidade, como diria Kant, e
passa a ter preço, onde qualquer outra coisa pode ser colocada em seu lugar. A
sociedade tecnocrata, capitalista se tornou um criadouro de coisas, humanos
mecanizados e bestializados.
A
internet, essa terra virtual que possibilitou transações bancárias rápidas,
comunicações em tempo real, acesso a textos, músicas, conhecimentos; que quebrou
a barreira da distância, do som e da sapiência; ela carregou em seu ventre a
falta de diálogo, ataques, fake news e monstruosidades.
A
internet se torou o palco de um espetáculo real e alicerçado nas mudanças dos
últimos anos; mudanças essas relacionadas a crises econômicas com desemprego,
recessão, crises políticas e recrudescimento de extremismos como: xenofobia,
racismo, ultranacionalismo, flerte com a ideologia fascista e outras mazelas.
Nas
redes sociais vemos o desdobrar do rancor, da falta de perspectiva de pessoas
que temem o outro, o diferente, o estrangeiro, coloração partidária e/ou
ideológica contrárias as suas. Nas redes temos o ataque ao outro, que de
interlocutor passou a ser o inimigo, o mal, o mensageiro do apocalipse.
No
lugar do diálogo, da ação, da compreensão temos a negação, o silenciar e o
apagar da outra voz.
Há
muito de ressentimento, de remoer sentimentos mesquinhos de inveja, de contrariedade;
se envenena ao não conseguir digerir o que incomoda; fracos, como diria
Nietzsche. Querem castigar o diferente, o nobre, o altivo; ou mesmo, o que
incomoda e contraria as massas, o rebanho sem voz própria que segue pastores
espirituais, líderes políticos carismáticos, ou as falsas notícias das redes
sociais.
A
civilização que tem a ideia de polidez, bons modos, ciência, “iluminismo”
racionalista; é também desumanizador, genocida, racista e mecanicista.
No
âmago da matrix prolifera notícias falsas, ataques a pessoas com
calúnias, injúrias, como as raciais. Desejos subterrâneos e sub-reptícios são
aflorados, ânsia em eliminar quem pensa diferente, quem tem outra fé, raça,
sexualidade, ideologia; quem nega a verdade única de quem se limita a uma
verdade cartesiana, fechada e excludente.
O
capitalismo passa por uma fase “toyotista” de acumulação integral com um estado
neoliberal, com neoimperialismo- globalização, e crises de acumulação de
capital cada vez mais frequentes.
Esse
regime do modo de produção tem como característica aumento das desigualdades
sociais, desemprego, estado mínimo para o social e máximo para a economia e
repressão dos excluídos. Nos últimos anos percebemos que ele foi criticado, e
em seu lugar tentam colocar um estado neoliberal na economia, e mais
autoritário e facínora ainda na política; uma mistura de fascismo com
liberalismo.
Desde
2008 sofremos a ressaca de uma crise, e, antes mesmo dela, já víamos a sombra
do monstro crescer sob as ruínas de outras crises. Nesse caldeirão borbulhante os
ressentimentos, os nacionalismos e autoritarismo crescem e explodem em ataques
virtuais que tomam corpo fora das redes sociais também.
A violência toma uma nova roupagem quando não somente fere, maltrata, machuca e mata; mas desumaniza e torna o outro apenas um animal para ser sacrificado ou coisa para ser trocada, destruída ou sucateada, e esquecida. Essa nova roupagem podemos chamar de barbárie, ela nasce dentro do intestino civilizacional, obscuridade cuspida pelo iluminismo, popularizada e disseminada na internet; nesse deserto surreal, tão absurdo quanto a vida fora da rede social ou a literatura kafkiana.
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Publicado originalmente no jornal Diário da Manhã em 20 de Agosto de 2020.
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