terça-feira, 17 de janeiro de 2017

De volta a literatura: O gato morto e esquecido, a saliva ácida do tempo



Enquanto a ópera tocava o canto lúgubre minava a alma, perfurava o ventre, dilacerava o que restava de humano nele. O choro, quente, úmido e salgado; rios de lágrimas sulcavam seu rosto efervescente que queimava como a paixão, que doía como o chicote nas costas do escravo, do cavalo, do tempo.
Melancolia, eis a palavra para aquela tarde. Fábio passeava pelos túneis nebulosos da memória, descia até o inferno de sua vida, a casa onde passou dias de tórridas cenas de sexo, amor e brigas, ali, ao lado da parede azul descascada, desbotada e mofada havia um berço, havia alegria, criança e um passado difícil de esquecer; no outro cômodo silêncio, mas havia gritos, algazarra, gemidos de prazer, soluços de choro, fome de viver.
O sol vem caindo, lentamente beijando o horizonte, novo mundo vem surgindo abafando o velho, o mundo não teima, Fábio teima, quer lembrar e deixa suas vistas passearem pelos cômodos, ele sabe que a casa será derrubada e no lugar dela será erguido um galpão; capitalismo.
A culpa, quem poderá culpar alguém por amar demais? Quem poderá perdoar quem matou o amor? O homem de rosto sofrido que sangra por dentro já fez sangrar a carne da mulher que já não existe mais. Numa loucura desenfreada, num momento de frenesi ele arrancou a faca e aplicou golpes perfeitos sobre os seios, sobre a barrigada, o coração, sobre o belo. Fábio pagou por isso, seu filho pagou com a falta, com a lembrança do banho sangrento; o cárcere angustiou Fábio, entretanto ele continua vivo, continua a percorrer os buracos do mundo, já Beatriz não respirar mais a poluição de Goiânia, não bebe mais o doce suco de caju, não come mais pão de queijo, não assiste mais Roque Santeiro.
“Se eu atirar na cabeça dele minha mãe voltará? ” Pensou Caio quando viu Fábio Solto. “Ele não é meu pai”. Um abraço tímido, um grito sufocado, amar ou odiar? O velho vai embora, Caio entra na casa simples em uma vila periférica, na periferia do sistema, no lado esquerdo do coração.
Na televisão massacres, presos matando outros presos, a balburdia instalada nos cárceres do Brasil, paredes pintadas de vermelho, cérebros espalhados por pisos sujos, cabeças rolando como bolas de futebol, o espetáculo lindo da barbárie; Caio reflete: meu pai poderia ainda estar preso, poderia levar um tiro, uma facada, eu poderia estar feliz, ou chorando sobre o corpo criminoso.
O carro corre como o tempo, Caio vira rapidamente pela esquina, o corpo agoniza, matou um gato, ele volta, olha. O gato está lá, sua mãe estava no quarto azul, seu pai anda na esfera azul, livre, e a culpa? A ópera toca alto no alto falante da memória, Fábio morrerá mais tarde de velhice e Caio irá esquecer do gato atropelado, será mais um animal morto pedido no armário escuro, destruído pela saliva ácida do tempo. 

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