Enquanto a ópera tocava o
canto lúgubre minava a alma, perfurava o ventre, dilacerava o que restava de
humano nele. O choro, quente, úmido e salgado; rios de lágrimas sulcavam seu
rosto efervescente que queimava como a paixão, que doía como o chicote nas
costas do escravo, do cavalo, do tempo.
Melancolia, eis a palavra
para aquela tarde. Fábio passeava pelos túneis nebulosos da memória, descia até
o inferno de sua vida, a casa onde passou dias de tórridas cenas de sexo, amor
e brigas, ali, ao lado da parede azul descascada, desbotada e mofada havia um
berço, havia alegria, criança e um passado difícil de esquecer; no outro cômodo
silêncio, mas havia gritos, algazarra, gemidos de prazer, soluços de choro,
fome de viver.
O sol vem caindo,
lentamente beijando o horizonte, novo mundo vem surgindo abafando o velho, o
mundo não teima, Fábio teima, quer lembrar e deixa suas vistas passearem pelos
cômodos, ele sabe que a casa será derrubada e no lugar dela será erguido um
galpão; capitalismo.
A culpa, quem poderá
culpar alguém por amar demais? Quem poderá perdoar quem matou o amor? O homem
de rosto sofrido que sangra por dentro já fez sangrar a carne da mulher que já
não existe mais. Numa loucura desenfreada, num momento de frenesi ele arrancou
a faca e aplicou golpes perfeitos sobre os seios, sobre a barrigada, o coração,
sobre o belo. Fábio pagou por isso, seu filho pagou com a falta, com a lembrança
do banho sangrento; o cárcere angustiou Fábio, entretanto ele continua vivo,
continua a percorrer os buracos do mundo, já Beatriz não respirar mais a
poluição de Goiânia, não bebe mais o doce suco de caju, não come mais pão de queijo,
não assiste mais Roque Santeiro.
“Se eu atirar na cabeça dele minha mãe
voltará? ” Pensou Caio quando viu Fábio Solto. “Ele não é meu pai”. Um abraço
tímido, um grito sufocado, amar ou odiar? O velho vai embora, Caio entra na
casa simples em uma vila periférica, na periferia do sistema, no lado esquerdo
do coração.
Na televisão massacres,
presos matando outros presos, a balburdia instalada nos cárceres do Brasil,
paredes pintadas de vermelho, cérebros espalhados por pisos sujos, cabeças
rolando como bolas de futebol, o espetáculo lindo da barbárie; Caio reflete:
meu pai poderia ainda estar preso, poderia levar um tiro, uma facada, eu poderia
estar feliz, ou chorando sobre o corpo criminoso.
O carro corre como o
tempo, Caio vira rapidamente pela esquina, o corpo agoniza, matou um gato, ele
volta, olha. O gato está lá, sua mãe estava no quarto azul, seu pai anda na
esfera azul, livre, e a culpa? A ópera toca alto no alto falante da memória,
Fábio morrerá mais tarde de velhice e Caio irá esquecer do gato atropelado,
será mais um animal morto pedido no armário escuro, destruído pela saliva ácida do tempo.