Aquele pão de queijo molhado
dentro da boca com saliva e café descia suavemente pelo brusco esôfago do
garoto, ele comia devagar e sentia a massa mergulhar em seu estômago, a fome
era coisa do passado, agora a sede tomava conta de sua consciência, sua
consciência-sede secava seus pensamentos, secava suas lágrimas, deve ser por
isso que ele não chorava, na verdade achava graça da desgraça liquida que
descia pelos olhos dos adultos naquele espaço, naquele momento, momento de
passar para outro parágrafo.
Sangue, um rio de sangue desce
pelas portas do elevador, a cena cinematográfica lembra o garoto que o mundo
tem sangue jorrando atrás das flores dos namorados, o corpo no caixão é de um
parente próximo, seus pais estão comovidos, a emoção é latente, bate dentro do
corpo mais indecente, mesmo os corações mais impertinentes, o garoto não chora,
apenas olha o corpo no caixão, sabe que ali não há mais aquele velho rabugento,
não há mais um humano, nem um animal, apenas uma massa fria e sem vida, uma
lembrança de dias rindo sentado na calçada, memórias de um ser que já amou,
gozou e duvidou da felicidade, Pablo, o garoto, sentia orgulho de ser superior
e não temer a morte.
Enquanto assistia o desenho Pablo
se lembra do velho no caixão, seu avô, lembra que sempre imaginava seus pais
mortos, deitados em um caixão, Pablo sempre achou, mesmo com cinco anos de
idade, que se preparando para as desgraças da vida sua vida seria menos desgraçada,
frustrada, cheia de culpas, Pablo sempre se preparou para a foice que ceifa a
vida, nada é para sempre e sempre ele pensou assim.
Assim foi o dia, sem mais nem
menos, a calculadora galáctica não é uma aritmética de mercado, não há lógica
no caos, apenas o acaso e por acaso Pablo se lembrou de um sonho onde ele anda
nu pelas ruas, envergonha tentava se esconder, sonhos são sempre estranhos, estranhamente
ele se lembrou desse sonho, as vezes sonhava que estava caindo, a vida é uma
queda, mas ele nunca gritou de desespero na queda da vida, olhou sempre para o
buraco do abismo com um sorriso irônico, sonhos, apenas sonhos.
A criança brinca enquanto Pablo
toma seu café, comendo pão de queijo seus olhos percorrem o gramado onde seu
filho corre, pensar que um dia esse ser vai morrer lhe trás melancolia, ele é
forte, isso não é o bastante para abalar seus espírito materialista, ele viu
seus pais morrerem e não derramou uma lágrima, lágrimas são pesadas demais para
suportar, nada é para sempre e sempre ele pensou assim, mas é seu filho ali
correndo pelo gramado, não podia pensar tão mesquinhamente, a mente não mente
quando o coração acelera, ele aguentava mesmo o peso da vida, Atlas do sertão.
A televisão brilha no canto
esquerdo da sala, uma notícia abala os espectadores, dois homens matam e
estupram uma criança, o sangue parece jorrar pela tela do aparelho, Pablo
assiste aquilo comendo calabresa, no intervalo do telejornal uma propaganda da Coca-Cola,
sabor do pecado, sua boca enche d’água, mergulha no seu íntimo e não pensa na barbárie
e violência gratuita, pessoas comuns estariam chocadas com o crime noticiado,
ele apenas espera uma morte sem um final shakespereano
para si, ele nunca chorou em funerais, não quer que chorem no seu. Um sonho a
noite abala Pablo, os estupradores estão chorando em frente a um caixão, dentro
do caixão Pablo vestindo terno cinza bebe Coca-Cola enquanto espera seu
enterro, ele acorda, enquanto escova os dentes chora, chora como uma criança, o
sonho o lembra de um amor escondido no inconsciente, uma mulher que ele amou e
foi enterrada em sua memória com sabor de refrigerante.
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