A boca seca, a sede percorre minhas entranhas, leio algo
estranho, assassinato em massa de cachorros em algum lugar do Brasil, não
levanto para beber água, não levanto para gritar contra o sangue derramado. Semana
passada li sobre jovens mortos em chacinas, pessoas mortas em guerras, mulheres
estupradas sangrando por dentro, violentadas por fora, dilaceradas em algum
lugar da alma, não levantei para beber água, a sede percorria todos meus órgãos,
podia sentir a falta de água em minha consciência, o nada dadificava a seco o
mundo dentro de mim, a água não molhava minha boca, os cachorros mortos boiavam
em minha imaginação junto de soldados fuzilados em alguma guerra longínqua,
perdida no tempo, não levantei.
O barulho no portão, cachorros latindo na rua, o som do
violão ensurdecia a noite, batia no silêncio de minha solidão, eu com sede
passava os olhos nas notícias, em vídeos eróticos, em fotos coloridas, o som do
coração batendo não era ouvido por mim, eu me lembrava de algum beijo
adolescente atrás de uma árvore, pessoas penduradas em árvores com cordas no
pescoço são assustadoras, assim como é assustador se enforcar na corda da
liberdade e se angustiar com decisões tomadas, a angustia dilacera o pensamento
de qualquer vivente, eu espirro, a poeira em meu quarto suspende e enche meus
olhos de sonhos com desertos, não levanto para beber água, me excito com fotos
de mulheres nuas.
Uma música psicodélica, mais notícias, corrupção, saudosismo,
gol, pessoas passando fome, governos ditatoriais, se o voto não fosse
obrigatório essa massa estúpida e acéfala não votaria nessa massa verborrágica
de vermes engravatados, se o mundo não girasse não seria engraçado, desgraça é
uma palavra poética que combina com respirar, arames farpados, campos de
concentração, pessoa esticando os braços, os cachorros mortos na notícia ainda
estão lá, apodrecendo junto de comunistas e seus muros derrubados.
Pessoas ouvindo músicas sertanejas e bebendo, jogos de futebol
gargalhadas, nada de discussões sobre melhorias salariais, sobre a arte após
segunda guerra, nada de olhar para as nuvens e tirar frases estéticas sobre o
branco mergulhado no azul, sobre o sangue e o pus saindo de pessoas ainda em
vida, mas mortas para o sistema, nada de indignação com o caos da saúde, beijo
a mulher em pensamentos, coloco meu pênis em sua boca, ele mergulha em sua
molhada cavidade bocal, depois puxo seus cabelos, bato em suas nádegas e gozo
dentro de sua vagina, acordo, lavo o rosto, não levantei para beber água
enquanto lia essa história e notícias sanguinolentas, os cachorros estão lá.
O desencantamento do mundo, a morte de deus, os tomates
verdes e fritos, o vento que levou todos os sonhos utópicos, as vaias aos
militares, as ditaduras eventuais, as pessoas merecem suas derrotas, merecem
seus governos, são imperdoáveis, os cachorros ainda gritam na escuridão, a
notícia ainda vibra nos olhos, corpos e mais corpos, levanto, bebo água, como
uma maçã e me lembro da música do Raul, mas os cachorros não vivem mais, mais
nada há de sensato no mundo, no mundo nada mais será depois de nadificado pela
consciência, guitarras, solidão em meu quarto, desligo a lâmpada, o sangue
espirra em mim, acordo, lavo o rosto, enquanto leio essa história o mundo gira
lá fora e aqui dentro matam cachorros por 5 reais.