domingo, 17 de junho de 2012

APENAS UM DOMINGO


Ela caminha, olha as pessoas chorando, orando, caminha suavemente, como se dançasse balé, olhos cheios de dor, mentiras sobre o passado, ela passa por entre olhares perdidos, ela olha no olho daqueles que não querem ser vistos, lembrados, daqueles que nem querem, apenas estão lá. Bíblias, caixão, um corpo, o velório prossegue, ela não é parente, amiga ou conhecida de alguém, ela apenas caminha pela igreja relembrando seu passado cheio de mágica, orações e mundos espirituais, ela ainda crê em algo sobrenatural, mesmo que esse algo seja indefinido.
A água desce pelo seu corpo, sua pele, seus braços, suas coxas, seus seios duros de juventude fazem uma ponte para gotículas brilhantes e líquidas, sua vagina molhada de água, suas pálpebras cansadas da vida, todo o seu corpo moreno, toda a sua virgindade serena, toda a sua falta de pureza, seu discurso sobre a natureza, naturalmente esquizofrênica de angustia, seu corpo molhado não lembra, seus lábios também não, sua mente sim. Sua mente lembra do caixão, ela achava graça por dentro, caminhando na igreja ela achava graça da desgraça, a morte é algo gozado, chega com dor e sorrisos apertados.
Ângela tem apenas quinze anos, sua boca já mordeu o veneno da danação, seu sexo ainda não foi penetrado, sua consciência já foi perfurada pelo questionamento, Deus ainda tem um lugar em seus pensamentos, o socialismo, o capitalismo, a fome, todas as desavenças, lutas sociais, de classe e...Ela tem apenas quinze anos, seus amores platônicos são diluídos em descrença com a humanidade, sua pouca idade já ri da morte, essa besta sem qualidade, mas falta algo em sua vida, um vazio que surge do nada e embrulha seu ser em papel alumínio, esse vazio a faz mal, a náusea é constante, sem explicação como a vida, sem motivação como a violência gratuita.
Caminha sobre a sombra das árvores, adolescentes se beijando, pessoas se divertindo, dia calma, é domingo, um livro do Machado debaixo do braço, o sol lá em cima, ela olha para a multidão barulhenta, ela olha para flores, pipocas, risos, há algo de podre nesse mundo, há algo de indeciso, impreciso, sem conexão ou explicação. Ângela para perto de uma esquina, os carros passam rápido, correm procurando diversão ou fugindo do marasmo do final de semana, Ângela pensa na vida, lembra-se do caixão. Pipocas, crianças, desilusões, porões da memória, viagens espaciais, cupons fiscais, carimbos invisíveis, painéis acadêmicos, tudo gira em redemoinho, em um mar rocambolesco de vertigem, o caixão, a oração, Deus sem rosto, pessoas, esgoto, ela pensa, se desanima, atravessa a rua sem pressa, um carro, sangue, um grito, o livro solto no asfalto, um corpo moreno sobre o negro da rua, o vermelho, a morte, sem sorrisos, sem explicação, apenas um domingo.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

DIA DOS NAMORADOS


O espelho, seu rosto refletido, sua razão desmascarada, seus sonhos derretidos, enquanto se masturbava Michel chorava, suas lágrimas também eram refletidas no espelho, seu esperma caia graciosamente no chão do banheiro, sua tristeza caia em seu pranto, em seu corpo, em sua alma. O espelho, reflexo, o rosto, enquanto chorava em frente do espelho João imaginava sua infância pobre, seu aniversário sem bolo, seus pés descalços, o pai que não conheceu, brinquedos que não ganhou, era 13 de junho, aniversário de seu filho, ele era lembrando enquanto olhava no espelho, no espelho Michel olhava seu rosto sem mágoa, sem vida, era 13 de junho, dia dos namorados, sua solidão o atormentava, a lembrança dela também, dela, Alicia, o espelho, o reflexo, o bolo, o caos, o esperma, o sangue, pobreza, turbilhão, tristeza, a música, psicodelia, Pink Floyd, copo e cerveja, angustia, Michel, João, Deus, o inferno, tudo hoje, nada ontem, o espelho, a sacanagem cósmica, o amargo 13 de junho, festa.
O azul do céu, brilho, nuvens carregadas de sonho, brancas, João encara a luz, as trevas penetram escondidas em seu mundo, Michel está trancado em casa, carrega seu ser em suas notas, sua música, João pega na arma, olha, a arma brilha, o céu brilha, os olhos de Michel brilham, saudade, o filho de João ri, seu pai se alegra, o céu, o azul, a saudade de Alicia, o mundo gira, a noite chega, João, Michel, o mundo todo se encobre de gótico, o luto , noite de 13 de junho, noite, sabor, de romance, gosto de mistério, terror em transe, horror mascarado, marginais sem galáxia.
A rua, a mesma rua, nela Alicia correu com seu belo jeans, nela João caminha com a arma, com o medo, com a vontade de comprar um bolo para seu filho, filho, filho da puta aquela motoqueiro, assim pensa Michel, ela morreu cuspindo sangue, o cuspe de João é seco, o medo, vai ser essa noite, treze, junho, aniversário, filho, dia, namorados, Alicia, morte, tudo embalado, tudo rasgado, tiras de vida, os dois penetram na noite, sem sentido.
O calor, a noite, a metamorfose transvestida, desgraçadamente divertida, os olhos, lágrimas escondidas, será que terá coragem? João. Michel. Alicia. Pedro, motoqueiro, andando pela rua Michel leva suas lembranças, suas cativantes, a dor, João vê um alvo, é agora, o bolo, aniversário, medo, Alicia, sangue: é um assalto, reação, tiro, um corpo, sangue, João corre sem o dinheiro, Michel cai sem vida.
A rua, 13 de junho, namorados abraçados param de se beijar para olhar aquele ser sem vida, aquele rosto solitário, Michel parece sorrir, ele reagiu, sua vida foi ceifada, João chega em casa, seu filho, sorriso, nada de bolo, o caos, reina, reino de dor, nada pior do que o arrependimento, cruel, foi cruelmente assassinado, a música toca, a morte baila em cima do corpo inerte.
O espelho, João olha, sua vida foi jogada fora, lata, lixo, em algum lugar, sua consciência pega fogo, sua carne treme, seu filho come um pedaço de pão, é treze, é 13 de junho, sua mulher chega do serviço, um beijo, namorados, é o dia, naquela manhã Michel se lembrou de alicia vestida com seu rosa preferido, o rosa foi a cor que ele viu quando seu corpo foi pintado de vermelho. Enquanto o mundo gira, enquanto escrevo, enquanto o beijo molha, enquanto João se move como um verme Michel não faz nada, seu corpo estirado no chão, namorados, solteiros, filhos, putas, pedreiros, todos os homens, gays, todas as mulheres, todos os olhares, o sangue corria, naquela manhã Alicia era tão linda, treze, dia de morrer.