Ela caminha, olha as pessoas chorando, orando, caminha
suavemente, como se dançasse balé, olhos cheios de dor, mentiras sobre o
passado, ela passa por entre olhares perdidos, ela olha no olho daqueles que
não querem ser vistos, lembrados, daqueles que nem querem, apenas estão lá.
Bíblias, caixão, um corpo, o velório prossegue, ela não é parente, amiga ou conhecida
de alguém, ela apenas caminha pela igreja relembrando seu passado cheio de
mágica, orações e mundos espirituais, ela ainda crê em algo sobrenatural, mesmo
que esse algo seja indefinido.
A água desce pelo seu corpo, sua pele, seus braços, suas
coxas, seus seios duros de juventude fazem uma ponte para gotículas brilhantes
e líquidas, sua vagina molhada de água, suas pálpebras cansadas da vida, todo o
seu corpo moreno, toda a sua virgindade serena, toda a sua falta de pureza, seu
discurso sobre a natureza, naturalmente esquizofrênica de angustia, seu corpo
molhado não lembra, seus lábios também não, sua mente sim. Sua mente lembra do
caixão, ela achava graça por dentro, caminhando na igreja ela achava graça da
desgraça, a morte é algo gozado, chega com dor e sorrisos apertados.
Ângela tem apenas quinze anos, sua boca já mordeu o veneno da
danação, seu sexo ainda não foi penetrado, sua consciência já foi perfurada
pelo questionamento, Deus ainda tem um lugar em seus pensamentos, o socialismo,
o capitalismo, a fome, todas as desavenças, lutas sociais, de classe e...Ela
tem apenas quinze anos, seus amores platônicos são diluídos em descrença com a
humanidade, sua pouca idade já ri da morte, essa besta sem qualidade, mas falta
algo em sua vida, um vazio que surge do nada e embrulha seu ser em papel
alumínio, esse vazio a faz mal, a náusea é constante, sem explicação como a
vida, sem motivação como a violência gratuita.
Caminha sobre a sombra das árvores, adolescentes se beijando,
pessoas se divertindo, dia calma, é domingo, um livro do Machado debaixo do braço,
o sol lá em cima, ela olha para a multidão barulhenta, ela olha para flores,
pipocas, risos, há algo de podre nesse mundo, há algo de indeciso, impreciso,
sem conexão ou explicação. Ângela para perto de uma esquina, os carros passam
rápido, correm procurando diversão ou fugindo do marasmo do final de semana,
Ângela pensa na vida, lembra-se do caixão. Pipocas, crianças, desilusões,
porões da memória, viagens espaciais, cupons fiscais, carimbos invisíveis,
painéis acadêmicos, tudo gira em redemoinho, em um mar rocambolesco de
vertigem, o caixão, a oração, Deus sem rosto, pessoas, esgoto, ela pensa, se
desanima, atravessa a rua sem pressa, um carro, sangue, um grito, o livro solto
no asfalto, um corpo moreno sobre o negro da rua, o vermelho, a morte, sem
sorrisos, sem explicação, apenas um domingo.