Experiência de vida é um acumulo de erros, enquanto fazia a barba Jorge pensava nisso, olhava para o espelho e contemplava suas rugas, sua cara de tristeza, seus pelos brancos caiam na pia e desciam com a água para o cano, seus olhos castanhos fitavam a queda, a água, suas rugas, suas lágrimas, sua falta de mistério.
Saindo do banheiro ele se pergunta o que é mais tristes, a sua solidão ou seu passado repleto de vida explodindo em lembranças a cada respirar. Um cigarro, a fumaça sobe e com ela a dúvida, os lábios de Jorge teimam em beijar aquele cigarro, boca que já beijou tantas mulheres, tantos sexos molhados de prazer. O cigarro acaba, a paciência acaba, a vida não teima em continuar, os erros fazem de nós seres com experiência, seres com sofrimento, seres humanos cheios de pudores, conservadores amadores, amores fazem sofrimentos serem mesquinhos, bregas e piegas, a dor liberta a carne, a carne pega fogo no inferno.
Trombetas, anjos sangrando, moscas em feridas, vermes chupando vidas, raivas adormecidas, brincadeiras perdidas, vidas escorregadias, tudo cheira a mórbido, nada sai da natureza de nossas palavras, as idéias de Jorge eram claras, ele iria fazer sessenta anos em menos de um mês, mas era um homem sem entusiasmo.
Tristeza e alegrias passam pelo lado esquerdo do peito, do lado direito tem uma rua cheia de incertezas, no meio tem um abismo, sem vida, sem raiva, amor, prazer, brilho ou escuridão, é nesse abismo que Jorge caiu, é nesse posso que nosso herói bebe das águas da desilusão. Todas as noites de festas, todos os livros literários, todos os amigos, risadas, todos os orgasmos, nada fazia diferença agora, ele poderia estar em meio a multidão, poderia estar no centro do furacão, nada faria diferença, a solidão não era falta, era fera que devora seu peito, monstro criado pela consciência, praga que brotava da bíblia escrita no abismo no qual Jorge caiu.
Jorge abre a janela, lá fora corre um esgoto, o grotesco, larvas saem dos lixos, mas no horizonte reina a esperança, flores exalam aromas refrescantes, lá fora no meio do caos há vida, mas a vida é absurda, é caótica. Ele lê algo interessante, ao som do erudito, em companhia do silêncio Jorge pensa em sua monótona e deselegante situação, lembra de Jó, de Shakespeare, reflete sobre todas as lutas, todas as angustias, sua liberdade o faz crer que é alguém que domina seu destino.
O espelho não nega sua idade, os pelos brancos já foram tragados pelo cano junto da água, o cigarro não engana mais sua ansiedade, o barulhos de crianças brincando no parque não deixa gosto de esperança em sua boca amarga pelo tempo, ainda há espaço para vida em seu peito, por que viver é algo tão insano? Falta desejo em sua queda no abismo, falta um grito, seja de dor ou amor. A porta está aberta, mas Jorge tem medo de sair, seus sessenta anos estão chegando, a vida não ensina ninguém como cair no abismo.
Até pode ser que ninguém nos ensina como cair no abismo, mas que o abismo sempre teve em nós, ah isso sim, ele sempre esteve.
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