quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

INFÂNCIA E RELIGIÃO.


As imagens refletem  uma odisséia, cores vivas, tons fortes, o amarelo tem uma primazia. A música começa, corações e mentes acompanham a melodia, olho para o lado e vejo minha mãe cantarolando aquela canção, ela acredita em santos, anjos, demônio e Deus!
É domingo, de manhã nada surpreende mais que o sono, levantar cedo, escovar os dentes, calçar o tênis branco, comer pão recheado com margarina, beber leite negro de chocolate e caminhar algumas quadras rumo a igreja.
Quando se é criança é fácil ter medo, eu tinha medo, tinha medo da morte, tinha medo de monstros, tinha medo do inferno, a igreja era um lugar que dava conforto, ela era um refúgio do mundo, era um lugar onde conversávamos com Deus e nos livrávamos do inferno. O capeta era sempre mencionado, ele é uma figura central no teatro religioso cristão.
A criação, o dilúvio, Jesus na cruz, Jó, Apocalipse, toda uma tradição, eu ajoelhado rezando, em minha volta paredes santas, pessoas emocionadas, imagens sacras, crucifixos, como era lindo ser católico, mas cresci, deixei para trás a fé em um mundo além, deixei fantasias infantis, crenças em poderes mágicos e encarei o absurdo da vida sem mentiras, sem mitologias, sem falsas esperanças, apenas o nada brilhava no horizonte.
Querer uma data precisa é coisa para historiadores positivistas, ela não existe, tenho apenas lembranças de um mundo desmoronando e outro surgindo, visões de um espaço sideral sem paraísos, corpos biológicos sem essências mágicas e espirituais, a morte como fim e não como começo.
Sinto falta da magia dos templos, de conversar sozinho com entidades que não existiam, era gostoso pensar que eu não morreria e que iria para outra dimensão, céu ou sei lá o quê, cresci, a única fantasia que alegra meu coração é a da arte, expressão da alma humana. Aquela criança que acreditava em fantasmas, demônios e anjos morreu, agora esse adulto cheio de amor, dor, angustia, dúvida e tesão caminha sem medo pelo vale das sombras com sua lanterna que brilha ao som da razão, da loucura, da morte e da vida.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O ABISMO


Experiência de vida é um acumulo de erros, enquanto fazia a barba Jorge pensava nisso, olhava para o espelho e contemplava suas rugas, sua cara de tristeza, seus pelos brancos caiam na pia e desciam com a água para o cano, seus olhos castanhos fitavam a queda, a água, suas rugas, suas lágrimas, sua falta de mistério.
Saindo do banheiro ele se pergunta o que é mais tristes, a sua solidão ou seu passado repleto de vida explodindo em lembranças a cada respirar. Um cigarro, a fumaça sobe e com ela a dúvida, os lábios de Jorge teimam em beijar aquele cigarro, boca que já beijou tantas mulheres, tantos sexos molhados de prazer. O cigarro acaba, a paciência acaba, a vida não teima em continuar, os erros fazem de nós seres com experiência, seres com sofrimento, seres humanos cheios de pudores, conservadores amadores, amores fazem sofrimentos serem mesquinhos, bregas e piegas, a dor liberta a carne, a carne pega fogo no inferno.
Trombetas, anjos sangrando, moscas em feridas, vermes chupando vidas, raivas adormecidas, brincadeiras perdidas, vidas escorregadias, tudo cheira a mórbido, nada sai da natureza de nossas palavras, as idéias de Jorge eram claras, ele iria fazer sessenta anos em menos de um mês, mas era um homem sem entusiasmo.
Tristeza e alegrias passam pelo lado esquerdo do peito, do lado direito tem uma rua cheia de incertezas, no meio tem um abismo, sem vida, sem raiva, amor, prazer, brilho ou escuridão, é nesse abismo que Jorge caiu, é nesse posso que nosso herói bebe das águas da desilusão. Todas as noites de festas, todos os livros literários, todos os amigos, risadas, todos os orgasmos, nada fazia diferença agora, ele poderia estar em meio a multidão, poderia estar no centro do furacão, nada faria diferença, a solidão não era falta, era fera que devora seu peito, monstro criado pela consciência, praga que brotava da bíblia escrita no abismo no qual Jorge caiu.
Jorge abre a janela, lá fora corre um esgoto, o grotesco, larvas saem dos lixos, mas no horizonte reina a esperança, flores exalam aromas refrescantes, lá fora no meio do caos há vida, mas a vida é absurda, é caótica. Ele lê algo interessante, ao som do erudito, em companhia do silêncio Jorge pensa em sua monótona e deselegante situação, lembra de Jó, de Shakespeare, reflete sobre todas as lutas, todas as angustias, sua liberdade o faz crer que é alguém que domina seu destino.
O espelho não nega sua idade, os pelos brancos já foram tragados pelo cano junto da água, o cigarro não engana mais sua ansiedade, o barulhos de crianças brincando no parque não deixa gosto de esperança em sua boca amarga pelo tempo, ainda há espaço para vida em seu peito, por que viver é algo tão insano? Falta desejo em sua queda no abismo, falta um grito, seja de dor ou amor. A porta está aberta, mas Jorge tem medo de sair, seus sessenta anos estão chegando, a vida não ensina ninguém  como  cair no abismo.