A
nova febre do momento é o filme, original da Netflix, O Poço,de 2019 e
dirigido pelo estreante Galder Gaztelu-Urrutia. Obra de
suspense e terror que vem conquistando pelo mal estar, crítica social,
violência e retrato da atual sociedade.
Na
obra vemos uma prisão vertical, com celas com um buco no meio por onde passa a
comida numa plataforma retangular e por onde se pode ver o poço e os andares superiores
e inferiores.
O
protagonista é Goreng, vivido pelo ator Iván Massagué; que ao contrário de
muitos, não cometeu nenhum crime ou foi obrigado a entrar no “poço”, mas
escolheu estar ali para ganhar um certificado, parar de fumar e ler um livro;
assim diz ele no filme.
Durante
a projeção da película, sou antiquado mesmo, percebemos que são dois
prisioneiros por cela, e que ficam em um andar, ou nível, por cerca de um mês.
E que, a cada mês vão aletoriamente para qualquer outro andar. Detalhe, a
comida sai do nível zero, da cozinha, e desce andar por andar pela plataforma,
depois de certo nível não sobra mais comida, e quem está no andar inferior come
o que restou do andar superior.
A
obra é cheia de metáforas religiosas, críticas sociais, e tem uma pegada “gore”
de terror gráfico. Seria a prisão uma espécie de purgatório, se parece com o
inferno de Dante; seria um panóptico social, uma crítica a má distribuição de
renda e alimentos? Difícil ser simplista e objetivo aqui.
Cada
pessoa que entra pode levar um objeto, há quem leve um cachorro, armas, tacos d
emadeira; o primeiro companheiro de Goreng leva uma faca; já o protagonista
leva um livro: Dom Quixote. E coincidentemente o protagonista nos lembra o
sonhador, utópico cavaleiro, ele entra querendo mudar as regras, acha que se
pode dividir com mais justiça os alimentos e fica horrorizado com a violência;
como estupro, canibalismo dentre outros que presenciamos na obra.
À
medida que Goreng desce ele presencia a selvageria e barbárie, o que a
animalização, fome e desespero pode fazer com um ser humano privado do mínimo
de dignidade. E a medida que sobe que sobe sente como muitos podem ser egoísta,
gulosos, mesquinhos, maldosos, e desgraçadamente antissociais.
No
filme há muitas menções a religião, crenças, o próprio Goreng é visto em algum
momento como um messias, mas ao contrário da figura do cristianismo ele cede as
tentações, se torna também selvagem, mas sempre mantendo o mínimo de humanidade,
e ao final, tenta mudar a sociedade como um revolucionário marxista e anarquista.
Utopia
ou realismo, ver o mundo apenas como ele, ou como deveria ser? Parafraseando
Cervantes autor de Dom Quixote. Subir, descer, passar fome, ter o corpo
mutilado, ter que provar carne humana, sentir a sujeira, a putrefação social,
corporal, ver a defecação sobre o corpo de outro ser humano; escatologia total
que coloca a visão mais otimista na mira de disparos pessimistas.
O
filme é obviamente uma crítica social, não fica claro se é somente ao capitalismo,
serve como uma luva também ao capitalismo de estado, o dito comunismo; mas se encaixa
melhor na má distribuição de recursos do neoliberalismo. Os de baixo comem o
resto, e se não há resto se devoram, os do meio saboreiam a saliva, excrementos
e a pouca comido que chega até eles. E rancorosos descontam urinando nos
debaixo, os de cima ao invés de dividirem justamente os alimentos se fartam e
comem além da conta, pois foram desprezados quando estavam no fundo do poço, e
agora querem aproveitar.
Um
elemento que é explícito é a burocracia, o controle; mesmo quem participa da
organização do poço desconhece suas peculiaridades e detalhes. Uma mulher que
faz parte da organização entra no poço, mas não sabia o quanto era cruel,
sórdido e desumano. Ela acredita na solidariedade, mas viu que para ter
mudanças tem que haver lutas; as pessoas do andar inferior ao dela só passaram
comer menos para sobrar mais comida aos outros quando Goreng ameaçou defecar na
plataforma com a comida.
Ao
fim do filme fica a indagação se foi tudo um sonho, estavam mortos, era delírio;
e se foi real há esperança, ou a sociedade não muda e seremos sempre esses
seres desafortunados vivendo em uma sociedade controlada e burocratizada, com
má destruição de recursos, egoísta e produtora de violência? A esperança é uma criança
adormecida no fundo do poço, quem assistiu o filme sabe do que estou falando.