A violência não é algo
inato ao ser humano, como é colocado pelo senso comum, e até mesmo por mentes
brilhantes como a de Thomas Hobbes que via o ser humano como naturalmente violento,
onde em estado de natureza era uma ameaça constante reinando a guerra de todos
contra todos; daí a necessidade de um Estado forte, autoritário e legal para
coibir esses instintos naturais.
A violência, assim como a
política, a cultura, a arte, a culinária, a economia e o controle social são
sociais. Não existe violência na natureza; um leão quando come uma zebra, ou
macacos brigam por comida não são violentos, pois não existe esse conceito na
natureza, assim como consciência que determinados atos são violentos.
A violência surge com a
sociedade classista, com a propriedade privada, com a luta entre classes. Daí surge
a dominação e exploração de uma classe sobre outras, da subordinação da mulher,
crianças e idosos, assim como a escravidão. E são nessas sociedades
contraditórias, conflituosas e desiguais que teremos a imposição da vontade e
da força de um grupo, classe ou individuo sobre outras classes, grupos ou
indivíduos, ato esse que viola a liberdade, constrange, machuca, causa danos
psicológicos ou outras características da violência, como o seu extremo, ceifar
vidas!
A violência, assim como a
criminalidade, que pode ser ou não violenta, não surgem num espaço vazio, são
realidade concretas de uma sociedade com seu momento histórico, suas
características geográficas-urbana ou rural; com determinado modo de produção e
reprodução da vida material com suas relações sociais de produção, Estado,
ideologias, forma de justiça e controle social, “cultura” etc. Logo a violência
faz parte de uma totalidade social com suas múltiplas determinações, como escrevia
Marx.
Em cinco de outubro
estreou no Brasil o filme Coringa. Essa obra conta a história do perturbado Arthur
Fleck, interpretado magistralmente por Joaquim Phoenix. Na obra ele é um
comediante frustrado que não consegue seguir a carreira cômica, e trabalha como
palhaço fazendo publicidade, alegrando crianças em hospitais. No início do
filme vemos o protagonista trabalhando e tendo o cartaz que segurava, enquanto
dançava, sendo furtado por um grupo de garotos, ele, Arthur, corre atrás para recuperar
o cartaz, mas é espancado covardemente pelo grupo. Temos aí o pontapé inicial
da história para a construção da persona do vilão, que nesse filme na verdade é
um anti-herói.
Apesar da violência
sofrida por Arthur ser considerada o início de sua transformação, ela na
verdade já começou com a decadência da própria sociedade, uma sociedade
mostrada na obra como desigual, violenta, sexista; leia-se aqui a cena onde uma
mulher é assediada num trem pouco antes de Arthur sofrer outro ataque, agora de
um grupo de “engravatados” executivos que trabalham nas empresas Wayne, isso mesmo,
do pai do futuro Batman, que no filme em questão é apenas uma criança que mal
aparece na obra.
No filme fica claro que
se tornou banal atos de violência gratuita contra mulheres, pessoas com
deficiências mentais e/ou intelectual, que o estranho deve ser expurgado, e que
a pobreza não passa de motivo de chacota entre ricos e programas de auditório,
como o apresentado por Murray, interpretado por Robert De Niro.
Na obra cinematográfica
Arthur é solitário, sofre de transtornos mentais e mora com a mãe, que também
parece ser doente; seu corpo magérrimo e insalubre demonstra não somente ele
como doente, mas uma vida social é doentia também. Para piorar, há cortes de
gastos com saúde e outras áreas sociais de atendimento aos mais carente, Fleck
tem seu tratamento interrompido e fica sem seus medicamentos. Como ficar lúcido
quando se vivem um mundo desses?
O diretor e roteirista
Todd Phillips nos seduz e convence, coloca o futuro “monstro” como carismático,
temos empatia pelo sofredor, e na medida que vamos descobrindo mais detalhes da
vida e do passado de Arthur ficamos mais emocionados e defensores do
personagem.
O filme já começa com uma
greve dos lixeiros, o filme que mostra o lado sujo do ser humano e da sociedade
também mostra a decadência urbana, as péssimas condições de trabalho, a
pobreza, os verdadeiros cortiços onde moram as pessoas mais simples, como
Fleck.
Tudo conspira para que a
violência, o caos, a “anomia” social, como diria o estruturalista Durkheim, reine
e aflore no coração das trevas de Fleck. A gota d’água é o segundo atentado
contra sua integridade física num trem, seguido da frustração profissional, da descoberta
dolorosa de seu passado e do bullying que sofre pelo apresentador de um programa
de entrevista e humor.
Nos últimos momentos do
filme temos o caos instalado na cidade de Gotham City, protestos contra ricos, que
são inflamados pelo assassinato de executivos num trem por um homem vestido de
palhaço, o futuro Coringa.
Nos últimos minutos temos
o nascimento do assassino, louco e ressentido que quer se vingar da sociedade
que cuspiu, riu e o machucou; todo apoio e empatia que tivemos pelo personagem
é colocado a prova, pois agora ele mata sem piedade e solta sua gargalhada
aguda, o mal tem o rosto pintada, tem sua risada, mas é fruto do deboche de
toda uma desgraçada, suja, doente e decadente sociedade classista.
Fica a polêmica, o mal-estar,
e ficamos divididos entre condenar o ressentimento dos doentes, moribundos e
pobres, como falava o filósofo Nietzsche, ou ter empatia pelo dominados,
explorados e desgraçados pelo capital.
A civilização pariu de
suas entranhas a barbárie! Homens perturbados como Fleck são condicionados a se
tornarem psicopatas vingativos e rancorosos, atos livres e conscientes, mas que
são decididos dentro da latrina social que em sua descarga descarrega essa
sujeira psicótica, pobre, negra e conspurcada nas lodosas sarjetas das urbes putrefatas
e animalizadas.
Ao final vemos o
nascimento sangrento, violento e debochado do Joker, o Coringa, que não é simplesmente
uma vítima da sociedade, ou mesmo um ladrão, sequestrador ou corrupto; é a
personificação do mal, do caos, da falta de sentido dessa sociedade.
O filme se passa nos anos
oitenta, anos de consolidação do Estado neoliberal, do Estado mínimo nos
Estados Unidos, do aumento da criminalidade, desemprego, do encarceramento em
massa. Tem tudo haver com o filme do Coringa.
Há várias referências na
obra, desde Taxi Driver, clássicos dos anos setenta, passando pelo Rei
da Comédia, ambos dirigidos por Matin Scorsese, que é um dos produtores de
Coringa. Temos também referências a Chaplin, desde a trilha, passando pela
questão do comediante e cena de filme projetado em um cinema.
Ao término do filme
ficamos tontos, enjoados, extasiados e emocionados; o filme nos faz refletir
sobre o mundo onde vivemos, nossas atitudes e ações. Somos coniventes com essa barbárie
que leva gente bárbara a ser violenta com outras pessoas?
O coringa não é um herói
ou um monstro, é filho maldito dessa maldição que tanto os conservadores querem
salvar, conservar e endeusar. Mas no fim temos que ser contra o filho que nossa
civilização pariu, e abortar esse feto infortúnio que geramos.