Final
de tarde, a noite já beija com sua negritude a atmosfera, o sol já mergulha
constrangido no horizonte, a música toca melosa, melancólica, de forma suave
toca o triste acorde, a voz do cantor diz coisas profundas sobre a superfície
humana. Chico Buarque, o que será que será que dói dentro do peito e que não
devia? O que diz o coração que não ouvimos em dias de chuva de pessimismo, em
fins de tarde sem perspectiva? A noite já beijou o dia, agora ela goza com sua
lua romântica, já posso pensar sobre o dia que se foi, as crônicas dessa
odisseia sem Ulisses.
O
que será que será que pensamos que é imoral, é legal e sem juízo? Revela a
harmonia de um inferno abençoado pelo padre e cuspido, cheio de escarro, por
quem não dá moral ao capacho humano que reflete sobre tudo isso. O terror
angustiante da espera do susto, da dor, do sangue, ou o horror da imagem repugnante
cheia de verme da carne deformada, do sangue escorrendo pelas feridas cheias de
pus. O mundo desigual é um terror, a violência que nasce de suas entranhas é um
horror, e o amor onde fica?
As
reticências do silêncio constrangedor quando perguntamos sobre validade de um
mundo que só dá valor ao útil, ao comercial e desvaloriza o que não é
pragmático; a vida não tem valor comercial, mas é vendida barata no mercado
pelo capitalista, pelo governo que não quer saber do SUS, a vida não é útil
quando é velha, quando não produz na indústria, quando ela é somente feliz é
desnecessária, o gozo não rende capital e não dá voto. O silêncio reina, assim
como o caos na boca da raposa do filme, as reticências caminham ao infinito,
mas é finita a vida, o lucro ultrapassa a moral, é legal.
Jean
Valjean de Vitor Hugo encontro Etiéne e a família Maheu de Zola, aquele que
roubou pão encontra os grevistas famintos, a França do século XIX é dissecada
pelos romancistas românticos e naturalistas; o liberal e o socialista nos
mostram um mundo onde a vida é jogada na latrina do sistema, pobres,
prostitutas, trabalhadores das carvoarias são ignorados. Quem são essas
pessoas? São humanas? Se são, elas não têm direitos a ter direito, ou seja, não
tem cidadania, logo, também não tem direitos humanos. Mas o que será que será
que faz as pessoas pensarem que direitos humanos é para quem não tem a mínima
importância social e econômica?
A
noite já chegou na sua metade, a vida das pessoas sem dignidade são metades;
quem pega ônibus cheio, quem gasta parte do dia na estrada, quem chega em casa após
a noite jogar seu manto sobre o sol e só tem tempo de comer, dormir e acordar
para dar lucro ao sistema novamente não tem dignidade; essas pessoas tem preço,
e é barato, miserável, a vida é uma miséria.
O
telejornal notícia mais uma morte violenta, a violência é gerada nesse mundo
onde somos violentados com falta do mínimo, pessoas morrem por causa de
celulares, bandidos são mortos por serem violentos, policiais morrem, todos
morrem um pouco quando se mata as pessoas nas filas dos hospitais, quando não
se tem educação para poder cursar uma boa faculdade, ou roupas para poder
passear no shopping cheio de burgueses. O sol é eclipsado, a razão deixa de ser
um caminho para vencermos a barbárie e se torna uma bárbara e cega
instrumentalização da civilização. A violência é fruto dessa razão
desarrazoada, dessa ganancia sem perspectiva humana, desses governos que não
são populares, mas instrumentos de uma classe pouco interessada em repartir o
pão com Jean Valjean ou com os pobres filhos da família Maheu, respectivamente
dos romances OS MISERÁVEIS e GERMINAL.
Para
finalizar o texto, porém, sem dar fim a
essa reflexão já marcada pela teleologia da desventura, que reina no mundo
mercantilizado cito novamente o velho Chico, o Buarque de Holanda e da poesia:
Pela cachaça de graça que
a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague