domingo, 21 de dezembro de 2014

CAFÉ E SANGUE




Notícias fúteis passeiam pelos meus olhos, olhos cheios preguiça e fartos de mediocridade, o café quente aquece o corpo moribundo, mas a alma fria continua a fitar as notícias frívolas e desnecessárias na tela do computador. A estrada escura, luzes de automóveis aparecem no alto, depois da curva, depois de uma eternidade de escuridão, a caminhonete velha continua vagarosamente a passear pela estrada, não há mais luzes de automóveis, já cruzamos com os automóveis depois da curva, agora há um deserto negro em nossa frente, a viagem continua, enquanto me lembrava daquele dia meus olhos passavam rapidamente pelas notícias de fofoca na internet.
As notícias e fofocas cheias de nada agora abrem espaço para sangue e desgraças, guerras, violência urbana, estupros, bombas, roubos, assassinatos, assassinato, sim, morte, foi o que levou o homem para aquela cadeia para onde estava indo a caminhonete comigo e aquele velho, enquanto olho o sangue em forma de texto minha cabeça viaja de volta ao dia em que fomos buscar Elton na prisão. A caminhonete já não passeava mais por um deserto negro, agora era iluminada pela luz e o calor infernal já aquecia nossos corpos, estávamos na porta da prisão, a demora enchia de ansiedade meu coração, Elton sai fleumaticamente, cabelos grisalhos, rosto sem brilho, mas com uma beleza simples ainda presente naquele homem que antes sorria, que antes chorava e que agora apenas caminha sem expressão, sem vontade.
O café continua quente, Elton já está em casa, bebo o liquido escuro e passeio com minha má vontade pelas notícias de internet, as mais bizarras e sanguinárias fazem minha dor aflorar e minha memória se agitar, refletir e voltar na época em que Elton deixou de sorrir e de chorar. Sorrir é algo estranho depois de passar por algo que somente pode ser comparado as pragas do velho testamento.
Desligo o computador, vou para a cozinha com a xicara sem o café, Elton está lá, bebendo água e pensando em peixes estelares, mentindo a si mesmo, pois no fundo pensa em Clara, eu também pensava em Clara todos os dias, depois que ela se foi eu também deixei de sorrir, mas passei a chorar, Elton nem isso faz mais. Depois de beber a água Elton me beija e desliza suas mãos fortes sobre meus longos e loiros cabelos, não fizemos sexo naquela noite, na verdade demoramos semanas para voltar a fazer, naquela noite dormimos como crianças, crianças tristes, pois pensamos em Clara a noite inteira.
Quando Elton foi preso ele ainda tinha o sangue dos dois homens na roupa, ele ainda fedia a matéria orgânica, a imagem daquele homem pacato e sorridente agora colocado como monstro assustou a muita gente na pequena cidade de cinco mil habitantes, alguns o considerava até herói, mas a maioria ficaram chocados com a barbaridade de seus atos, torturar e enterrar vivo não é ato, humanitário.
Ver uma menina de apenas sete anos estuprada e morta faz muita gente perder a vontade de viver, Elton perdeu apenas a humanidade. Acordei com o gosto do café na boca, ainda me lembrava de algumas notícias toscas da internet, Elton já não estava mais em casa, havia saído para procurar emprego, fui preparar o desjejum e enjoava com as imagens de minha filha Clara ensanguentada, melhorei depois que passei a pensar em Elton cheio de sangue enterrando aqueles dois homens ainda vivos, eu acompanhei toda a ação sem julgar ou falar, o café quente e as bolachas descem suavemente, a vida nasce e morre facilmente, é fácil matar quando não se tem mais limite, nem Deus pode segurar mão fortes e decididas como as de Elton, bolachas de chocolate são deliciosas no café da manhã.