O inverno chega mais cedo aos
corações acesos, aos homens sem coração, aos novembros sem noção, o inverno
chega mais cedo no inferno astral, no mapa desenhado a mão nos peitos
calejados, nas mãos que afagam serpentes venenosas, o inverno gela tudo que
respira, rasteja, beija e almeja um lugar ao sol. No horizonte uma luz, ela se
desmancha como um sonho em frente aos meus olhos cansados de tanto ver, cegos
de tanta esperança, o frio gela os poros, entra pela porta e esfria a emoção,
enquanto ouço o chorar de uma criança penso no estado, esse gélido monstro,
penso nos descamisados, esses gélidos corpos sem alma, sem dinheiro, sem nada e
nada mais penso além disso no final de tarde gélido onde a luz some e a
escuridão soa com barulho silencioso ao som de uma gaita como trilha de western
espaguete.
A luz agora é uma representação
em minha mente, ela se confunde com a luz da lâmpada, mais uma vez a criança
chora, penso nas palavras pedagógicas de Maquiavel, o mesmo que rompeu com Platão
e Aristóteles e deu o ponta pé inicial da ciência política, ser amado ou ser
temido, ser ou não ser, cair sem chorar no abismo, já confundi poetas e
filósofos em uma ação epistemologicamente caótica agora penso que pensar é um
cogito que vem depois da existência, a música estronda, vejo em minhas
enrugadas ideias um cowboy em um duelo, o final de tarde é mesmo monótono.
A música parece sumir no final da
avenida que cruza a curva de meus ouvidos, o choro da criança fica mais baixo,
nem Marx me convence mais sobre a exploração do Estado, o frio sopra lá fora,
os românticos desejos somem aqui dentro, uma revolução francesa derruba a
bastilha de meus ferimentos, de meus sentimentos, não sinto mais, mais nada
sinto por ela, me lembro como era verde os pastos naquele mês de chuva, naquele
ano que nem me lembro mais, mas teimo em me lembrar mesmo assim, foi a última
vez que a vi, foi a última vez que beijei aquela boca que vomitava palavras desenfreadamente,
falava de Nietzsche como se falasse de cinema de sessão da tarde, comentava
sobre arte, sobre espiritismo as avessas, ela já amou uma vez, amou loucamente
assim como loucamente se agarrava a meu corpo num frenesi assimétrico e sem
vergonha na hora do sexo, ela perdeu a vontade de amar depois de não ser correspondida
por seu amado, ter sido deixada com um filho preenchendo seu ventre era algo
desagradável, a marcha para o oeste de sua alma começou ali e desaguou num
beijo solitário no vento embaixo da árvore onde fizemos amor numa tarde de
novembro, logo depois ela me abandonava assim como fora abandonada um dia, um
dia frio para lembrar disso, as notícias no jornal mostram jovens protestando
por todo país, algumas ondas de vandalismo político, rousseana imagem, a imagem dela chupando meu membro era vertiginosa
nesse fim de tarde, ela empinava suas nádegas num ato animalesco enquanto em
desfrutava de seu corpo, embaixo daquela árvore onde gemeu pela última vez ela
se despediu com um beijo imaginário e partiu partindo também meu coração.
Música africana, tão vago quanto
falar música francesa, tocava algo no rádio do vizinho, eu fumava e via a fumaça
sair pelos ares assim como saia nostalgia de meus dedos enquanto escrevia sobre
Ana, ela partiu e deixou um vazio, o vazio pós-moderno faz com que nos
perguntamos para onde vai a política, nosso sonhos, as utopias caíram com um
muro, mas do escombros saiu uma poeira que mostrava que ainda há pelo que lutar,
lutar pelo amor, assim lutei, como era belo seu rosto nas tardes de Abril, ela
abriu o vestido e mostrou seu seio cheio de prazer e nele mergulhei.
O frio dá uma trégua, mas o frio de meu ser continua, aprendi com Ana a ser gélido, não me
emociono com velórios ou reportagens de pessoas passando fome, não choro com
músicas sentimentais, o choro de uma criança volta a me incomodar, talvez seja
o filho de Ana chorando em algum lugar, ela perdeu o bebê num ano frio, num ano
em que conheceu Fábio, aquele jovem fanático em política que iria se
transformar em um escritor fantasma, em um jornalista fracassado, iria se
transformar em mim e em mais nada.