As paredes do quarto eram pálidas, não transmitiam emoção,
ela olha as roupas de cama sem brilho e sua roupa sem vida, nada alegra seu
coração, o soro pendurado, o velho sonolento no leito ao lado, palavras
silenciosas, monólogos mentais, ela dialogava com a janela, dela saia um
pequeno raio de sol, tímido como uma virgem. O ar pesado pesa sobre sua cabeça,
Márcia olha para o espelho do banheiro, ela sorri amarelamente, suavidade de
ânimo, voltando ao seu leito ela pensa no beijo, no abraço daquele homem que
tanto se parece com ela, mas ele é tão frio.
O livro de Jó parece interessante, o sofrimento humano fica
pequeno diante dos desígnios de Deus, o velho testamento traz uma justiça mais
sanguinolenta, mais feroz, menos “paz e amor” do novo testamento, se Jesus
tivesse nascido naquela época ele iria crucificar ao invés de ser crucificado.
O crucifixo fixado nos corações traz a lembrança de vidas amargas, de
esperanças leitosas, de amores corrosivos, a tristeza com a história de Jó é
aliviado com o sorriso daquele homem ao lado, Márcia o conhece, já se falaram
algumas vezes, ele é simpático, sorriso discreto, ela parece estar apaixonada
por ele, apaixonada pelo magnetismo do olhar de Walter. No hospital Márcia se
lembrava daquele dia na igreja, o velho vomitando não tirava o prazer de
momentos tão agradáveis, o sangue saindo e se misturando ao soro, ela já viu
coisa pior, o beijo de Walter agora era sentido mais uma vez, ela adormece com
a dor que a fez dar entrada no pronto socorro, a dor de Jó é só uma metáfora
para discussões filosóficas.
As folhas coloridas caídas no meio do caminho, um ar
romântico no passeio de domingo, Walter falava coisas agradáveis, segurava com
firmeza a mão de Márcia, ela estava convencida que havia encontrado seu grande
amor, sempre nos convencemos de algo e sempre esse algo depois nos coloca em
dúvida, ela não duvidou, a segurança leva ao inseguro respirar, ela respirava o
ar do amor, o amor precoce de juventude.
O corredor parece um funil para a eternidade, olhando para
ele ela se perdia, a fraqueza também contribuia para a vertigem, enfermeiras
andando para todos os lados, soros, remédios, curativos, tudo registrados pelos
olhos lânguidos de saudade, fracos de verdade, sem lágrimas, Márcia olhava para
o corredor do hospital como se contemplasse a nave espacial de 2001, não havia
mistério naquele prédio, havia mistério com o homem que lhe jurou amor eterno,
seu jeito de sorrir era estranho, ele era bom demais, amável demais, tudo que
transborda é preocupante, suas qualidades transbordavam e inundavam os rios de
dúvidas, ela não percebia nada, nadava nas águas do amor, do prazer até se
afogar no amar de tanto amar e remar para as praias feias do racional.
Com as mãos amarradas ela assistia a tudo, aquele homem tão
amável e sensual agora segurava uma faca com maestria, o brilho de seus olhos
eram demoníacos, ele não suava, tremia ou vacilava, frio como uma geleira,
gelava sua vítima com seu turbinado ser, sua expressão maníaca. Com a faca
Walter retalhou a carne da mulher amarrada na cama, ainda viva ela gritava, o
sangue espirrava no rosto de Walter, esse sentia uma alegria mórbida com os
pingos vermelhos no seu corpo, Márcia amarrada a uma cadeira assistia tudo horrorizada,
depois de retalhar sua vítima, agora morta, o amoroso amante tira a roupa de
Márcia e a obriga a fazer sexo com ele ali mesmo naquele açougue humano, enquanto
Walter gozava sobre o sangue Márcia
chorava, sua lágrimas refletiam o vermelho do cenário, a cena se repetiria mais
três vezes até serem descoberto em uma cabana, Walter saiu algemado de lá com
uma tranquilidade divina, Márcia deixou seu amor retalhado junto das carnes das
vítimas.
Uma música toca baixinho, o velho escuta aquele tango como se
ouvisse a voz de um professor, Márcia com seu jeito reservada deitada virada
para a parede ouvia a música que chegava até ela com uma melancolia serena, as
lembranças dos vermes passeando sobre os corpos das vítimas de Walter ainda
eram presentes em sua mente, eles bailavam ao som do tango, o amor também seria
um verme, Walter seria um verme? Aqueles vermes que escorriam pelos corpos
mortos não eram maus como Walter, não eram arrebatadores como o amor, eram
simples, eram sobreviventes, Márcia era uma sobrevivente, ela não chorava mais,
não amava mais, nunca mais amou, nunca mais sentiu prazer, se tornou fria como
Walter, mas não matava pessoas, matava sentimentos que brotavam sem
consentimentos em sua epiderme e transpirava o rancor para longe dela. Walter a
salvou de um mundo passional e a jogou na cela do mundo racional, ela imaginava
o sol lá fora, a beleza do mundo não passa de desculpa para não vivermos de
forma mais pragmática, Walter era como Jó agora, apenas uma metáfora.