quinta-feira, 22 de novembro de 2012

FINAL DE TARDE.



O cachorro com seu olhar melancólico fitava o frango frito em cima da mesa, a cerveja gelada descia elegantemente pela garganta, olhando para a rua via sem entusiasmo as pessoas passando sem sentido sentindo uma vontade sem razão de mergulhar no meio da multidão que desaparecia no horizonte. A conversa passava pela rotina do serviço, por política, corrupção, sexo e relacionamentos, nada de novo a baixo do sol, a lua já brilhava, abaixo dela nada de novidade também.
O cachorro deita, seu corpo parece estar fragilizado, a fome está estampada em seu jeito lânguido de ser sendo essa coisa magra, fraca, essa coisa cachorro, esse animal coisa, esse cachorro deitado em frente a mesa do bar, mesa que tem cerveja, conversas ordinárias e homens pensando em pensar, em viver sem consciência da realidade, o cachorro a frente da mesa choca apenas a mim, mas a cerveja me entorpece e logo esqueço e não noto a presença dele.
Lembranças da noite passada ronda minha mente, a forma como ela gemia, a forma como ela engolia a sedução e cuspia o desejo em minha cara, meu rosto era espelho de meu êxtase, suas pernas em torno do meu corpo, minhas mãos segurando firmes seus seios, nosso gozo gozando a vida sexualmente, enquanto bebia suavemente o líquido alcoólico minha mente desavergonhadamente  se constrangia com o beijo dela, ao lado ouço falarem de política, algo sobre imperialismo, o cachorro está com os olhos fechados, meus amigos falam sobre corrupção, acabo de ilustrar minhas lembranças com o rosto cheio de esperma dela em minha memória.
A televisão mostra algo , sangue escorrendo pelas ruas, policiais morrendo em São Paulo, a violência explodindo na mídia, cinematograficamente vemos o horror, mas o horror sempre existiu, a violência sempre habitou o mundo, leões comendo gladiadores, bruxas pegando fogo, empalamentos, naquela hora bebo mais um gole de cerveja e penso no mundo onde os fracos não tem vez, aquele cachorro acorda, ele é fraco, jogo ossos de frango para ele, me lembro do beijos dela, mais sangue na tv, a conversa agora é sobre o horror, apocalipse now!
Chego em casa, a música toca no computador, como algo doce, a água suaviza o efeito do álcool, na tv um filme de ação, carros correndo, adrenalina, meu dia passou, anoite caiu, o gosto da cerveja aparece junto com o gosto de rotina, mas quebrada, dilacerada por conversas triviais com amigos, a imagem do cachorro fica em algum lugar do passado, meus dedos digitam o telefone dela, mais um dia, menos uma jornada, os carros correm no filme, as palavras correm para finalizar esse texto.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

CRUCIFICADOS



Enquanto o sol brilhava lá fora, dentro da igreja era apenas uma imagem que brilhava na mente de Caio, um homem crucificado e pingando sangue, o sangue escorria com seu vermelho vivo pelo corpo cheio de feridas, isso é uma visão realista de um cristão. O sangue escorria quente pelo corpo cheio de feridas de Fábio, ele estava crucificado a guerra, preso ao santo ofício de matar pessoas e sofrer a angustia claustrofóbica de estar na guerra, ele era amigo de Caio, os dois eram homens santos, fieis seguidores de Deus e do seu país, sacrificavam suas vidas pela virtude, pelo nacionalismo, eram dois heróis, dois ingênuos, o mundo precisa de ingenuidade assim como precisa de água.
O helicóptero surge no horizonte, na troca de tiros o barulho das hélices se confundem com gritos de dor, de munições zunindo no espaço, com o horror pintado em faces assustadas, em rostos brutalizados, o sangue escorre sem parar, ele lava a alma e purifica o já putrefato ser em guerra. O helicóptero aterrissa, corpos sem vida são lançados dentro da aeronave, corpos feridos seguem atrás, corpos sem espírito também adentram o monstro aéreo, no ar, suspenso entre sonhos, anseios, mortes e carnificina os soldados olham para o mar de indiferença que reina abaixo, Caio e Fábio estão voando agora em sua imaginação, na terra imagina-se que há um mundo melhor.
Sentada em sua cadeira confortável Márcia escreve desconfortavelmente sobre coisas alegres para Caio, ela sente saudades dos abraços que a fazia sufocar de alegria, suspirar de prazer, os beijos que incendiavam sua boca e inflamava sua identidade, ela era agora uma mulher escrevendo a um homem perdido em algum conflito armado, ela estava armada com sua notícia, com seu amor, com sua força de vontade, queria, desejava e temia, um dia poderia vê-lo ou poderia perder, a tinta secava, o papel molhado de lágrimas, enquanto isso o sangue escorria entre os crucificados.
Uma emboscada, presos entre duas frentes inimigas o pelotão de Fábio agora estava entre duas batalhas, os fuzis cuspiam munições como pastores cospem palavras, a filosofia nietzschiana não seria mais desconstrucionista do que a artilharia que penetrava em carne viva. Correndo para um lugar mais seguro Fábio acaba caindo em um buraco, a chuva caia e molhava o soldado dentro do lugar onde estava, sua perna quebrada dilacerava seus sentidos com uma dor infernal, o inferno queimava o mundo com a guerra. Ele é socorrido, já fazia mais de um dia que estava lá, caído no buraco.
Fábio e Márcia conversavam sobre coisas banais, tomando chá e comendo biscoitos, o filho de Márcia corria pelo quintal, uma criança de cinco anos, loira como a mãe, com os olhos do pai. A carta suja de sangue e terra é devolvida a sua escritora, ela recebe com um ar de tristeza, a mesma carta que ela escrevera a Caio a cinco anos atrás. Fábio olha para dentro do redemoinho caótico de sua memória e vê um homem mancando com uma muleta chegando ao acampamento, o homem havia saído de um buraco e estava com a perna quebrada, o mesmo olha os corpos sem vida, um deles é de Caio, Caio tinha um tiro na cabeça, seu cérebro que tanto sonhou em ir embora agora não sonha mais, é uma massa fétida espalhada pela floresta, dentro do bolso uma carta, já aberta, dentro dela uma notícia, uma criança iria nascer, seu filho. Caio morreu sabendo que seria pai, ele se foi e uma criança veio, lágrimas não mudam isso, a criança agora corre no quintal, biscoitos, chá e conversas triviais fazem Fábio sorrir, Márcia não escreve mais cartas.