segunda-feira, 30 de abril de 2012

SEM ROMANTISMO


Eu cresci na atmosfera que cobria os céus do final dos anos oitenta, era uma época que mistura o pessimismo de uma década perdida economicamente com uma esperança lasciva pelo fim do regime militar, acompanhei a primeira eleição direta para presidente, o charmoso e corrupto Collor, o barbudo e polêmico Lula, vi a ressurreição de Batman pelas mãos góticas de Burton, a morte de Senna, programas infantis com loiras animadas, palhaços indecentes, capetas infantis. Percorri o cinema testosterona, com rambos, exterminadores do futuro, cinemas de aventura com perseguições por esmeraldas, cálices sagrados, mergulhei em lagoas azuis, viagem em naves espaciais com Han Solo e capitão Kirk, todos heróis, charmosos, elegantes, bem humorados, porém não são eles que encantam tanto, já havia um sentimento pelo marginal, pelo cômico, pelo irônico, estava surgindo uma onda de apego ao anti-romântico, ao personagem anti-herói.
Vivemos em um mundo que ainda tem uma forte ligação com o romantismo burguês e com seu modelo de herói, mesmo com essa proximidade surgem outras perspectivas, o feio, o gordo, o picareta, o mal que não É necessariamente vilão, todos aqueles que não se encaixa na cartilha do herói estão Sendo colocados em uma situação de destaque e até cultuados, veja exemplo de personagens como seu Madruga, Homer Simpson, Hannibal Lecter, Jack Sparrow, viúva Porsina, o médico House e por vai. O cinema pós-moderno, as novelas de crítica social, seriados com uma ironia ácida, a literatura do século XX, temos uma visão de personagens menos “endeusados” e mais humanos, com seus dilemas, defeitos, corrupções, fraquezas, temos o absurdo humano expressado com toda a sua excentricidade e beleza.
Caminhar por um mundo idealizado e romantizado é gostoso, descer ao inferno, passar pela periferia dos sentimentos, pela fantasia realista é um deboche surpreendente, poder rir das desgraças, curtir com a moral estabelecida, colocar os nossos anseios, frustrações e desejos em uma bandeja e servi-los, o anti-herói é essa válvula de escape para o humano reprimido em fantasias idealizadas, agora temos outras fantasias realizadas, temos outros momentos eternizados nessa vida finita, intensa e complicada.
 

sábado, 14 de abril de 2012

O VELHO CLAUDIO.


Os cabelos brancos não escondem sua idade, seu jeito curvado, seu olhar perdido, sua boca parece beijar o cigarro, a fumaça toma conta do ar, o cinza reflete lembranças amargas, às vezes o azul do céu o lembra de pequenas alegrias.
Um barulho, carros a correrem pela massa asfáltica, luzes a brilharem na noite, pessoas conversando, marginais perambulando, alegres, tristes, seres humanos boêmios, seres humanos noturnos, o barulho se choca com a contemplação do velho Claudio, com a insônia do enrugado homem e seu cigarro.
Toques de violão, música que parece brotar do passado quebrando a vegetação na qual vive Claudio, levando certa emoção a suas veias congeladas.
O chá chega com o calor da tarde, Mercedes senta ao lado do velho pensativo e fica imaginado como foi a vida desse ser taciturno, melancólico e misterioso, mal sabe ela que esse ser foi um homem violento, que feria mulheres, matava homens, batia em crianças, destroçava felicidade, queimava alegrias. Claudio era um assassino frio, um ser desprezível, imperdoável, porém humano, todos os seus defeitos, todos os seus pecados eram a mais pura essência humana, ele fazia o que era de sua natureza ignorante, de sua estupidez marcante, sua cultura arrogante.
O sol está se pondo, um laranjado poético colore o horizonte, os olhos quase cegos de Claudio se enchem de lágrimas,ele se lembra de Débora, se lembra de seu grande amor, de seus filhos, de sua casa, mesmo os monstros, mesmo os mais imperdoáveis tem seus sentimentos, tem suas manifestações mais fraternais, nas entranhas desse homem repousava um amor pela vida que lutava com sua ira e sua raivosa ação homicida. Dentro de todos nós há algo de horror que se espalha pela alma.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

UM DIA QUALQUER


Tem dias que a minha alergia do universo contamina minha alegria, conspira contra o meu otimismo, tem dias que o calor derrete sentimentos, aquece ressentimentos, tem dias que nem é bom falar, mas é bom gritar, jogar o silêncio no ventilador e deixá-lo se espedaçar.
Nem todas as palavras do mundo poderiam traduzir o que sinto em ralação a vida, é indescritível, seria ridículo dizer que tenho ódio, raiva, amor ou tesão, nenhuma dessas palavras refletem a ilusão, a angustia, o mergulhar no nada quando caio no abismo infinito da vida sem gritar.
Tem dias que a música penetra em meus ouvidos sem pensar, tem dias que minha razão é mais louca, minha voz é mais rouca, minha paixão é mais segura, meu amor é uma revolução. Tem dias que me sinto fora desse lugar, sem espaço para habitar, isso não é tristeza, não falta alegria, nem verdade posso afirmar com certeza, no fundo é a dúvida que dá brilho a esses pensamentos.
Minha vizinha chega tarde da faculdade, ouço arrumando seu apartamento, fazendo seu jantar, não ouço risadas, choro, telefonemas, parece que essa moça de cabelos loiros e mistério latente também está deslocada nesse universo, nessa coisa caótica que teimamos em organizar mentalmente.
A ópera, a morte, trombetas demoníacas, cores vivas, dicas televisivas, amo o que não entendo da vida, não entendo nada, mas vivo, sinto, me jogo no ar, respirar é mesmo uma aventura. Tem dias que não sei o que sinto, o que penso, não sei o que sei, mas sei que escrevo sem saber o que deveria saber um sábio qualquer.

terça-feira, 3 de abril de 2012

SEM DIREÇÃO


Dirijo, a noite encobre meus desejos, meus sonhos, os mais belos, os mais coloridos, os mais indecentes. Vozes roucas penetram em meus ouvidos, dirijo. Músicas sacanas, óperas escaldantes, pop, brega, rock, o inferno e o céu, tudo embala a noite, essa cortina negra romântica, sombria, sem medo, sem perdão. Dirijo.
Ela não está lá, eu a via todos os dias passando no mesmo lugar, seu sorriso, sua pele refletindo meu tesão, meu olhar cheio de angustia sobre o mundo, essa noite quente, ela não apareceu, perdi a oportunidade, não vou mais vê-la, dirijo.
O grito, munições voam de um lado para o outro, sangue, pessoas chorando, o fogo, apocalipse agora, essa noite, acordo, o sangue escorre em minha imaginação, em minha frente vejo um corpo, esse não é um soldado, estava na guerra, agora estou na batalha do submundo, da marginalidade noturna, dirijo, polícia, prostitutas, boêmios, lésbicas, todos os charutos, passeio por cantos mórbidos, por lugares luminosos, alegrias desdentadas, carros desgovernados, dirijo.
Essa noite fui ao centro do universo, entre no estômago do monstro, sai sem rumo, sem destino, apenas uma direção a tomar, a primeira que aparecer. Sigo rumo a algum lugar, chego em algum lugar, não quero saber, sem itinerário, dirijo, subo com meu carro pelo tapete asfáltico, dirijo mergulhando no nada, no vazio de minha alma, dirijo, dirijo, dirijo...